sexta-feira, outubro 29, 1993

ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS


FACE OCULTA

ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS



Entregues as listas de candidatos, todos se aprontam para o arranque da batalha eleitoral das eleições autárquicas.

Infelizmente tudo parece indicar que, mais uma vez, vai ser uma corrida de pé-coxinho. Fundamentalmente porque os estados-maiores dos partidos, os todo-poderosos da política em Portugal, se preparam para pôr a fasquia destas eleições em alturas que têm pouco a ver com o poder local.

Todos se preparam para tirar dos resultados, quaisquer que sejam, ilações e extrapolações para a «alta» política, quer regional quer nacional. Se o poder local eleito for favorável à oposição esta vai afirmar que as eleições legislativas já não são válidas. Se a fortuna calhar à situação esta vai tentar demonstrar que o seu poder legislativo foi, mais uma vez, legitimado.

Conclusões, à partida, perfeitamente ilegítimas.

O poder local, cerne do dia-a-dia da comunidade, não pode estar prisioneiro dos jogos partidários e das respectivas ânsias de poder. Por definição ele é um poder virado para a execução e, por consequência, dotado de baixo teor partidário.

A votação nas autárquicas e, por natureza, altamente personalizada. Os eleitores são chamados a escolher as pessoas que vão, a nível local, gerir as suas necessidades e anseios. De tal modo que se generalizam, por esse país fora, as transferências de partido e a caça aos independentes.

Por tudo isso o xadrez do poder local não coincide, frequentemente, com o xadrez do poder legislativo. E ainda bem, porque assim se evitam monopolismos que apena julgam o desenvolvimento do progresso.

É perfeitamente saudável que as maiorias autárquicas não tenham nada a ver com aas maiorias legislativas e vice-versa.

Um poder local forte e dotado de autonomia é, sem dúvidas, uma condição indispensável para o desenvolvimento das comunidades, nomeadamente das mais interiores e/ou periféricas. Só espíritos obtusos e autocráticos podem ver trevas nessa autonomia. Porque um poder locar válido e forte é um suporte precioso para a governação sensível aos problemas locais.

Não se pode ver a floresta apenas pela árvore mas o contrário também é verdadeiro.

Já sendo tarde para que as eleições autárquicas em Portugal possam ser disputadas, a todos os níveis, por independentes. Gente que se pretenda empenhar na defesa dos interesses locais e do progresso comunitário, sem assumir compromissos ou dependências partidárias. Propósito perfeitamente legítimo que só poderá manter medo a quem do poder tiver uma versão autárquica e carreirista.

Nenhum democrata contesta a importância dos partidos. Importa, apena, realçar que a vida política de um país não se pode resumir aos desígnios de dois ou três partidos. Tem que ter um carácter muito mais lato com a participação activa da sociedade civil.

Apenas assim se impedirá a total partidarização da vida política do país e, o mesmo é dizer, a total dependência das direcções partidárias que, em muitos casos, dependem quase exclusivamente de um homem.

Pelo que é fundamental que se altere a lei eleitoral das autarquias locais e que as respectivas eleições sirvam para legitimar os autarcas mais capazes e empenhados e não apenas para, como frequentemente acontece, justificar jogos de poder dos partidos e respectivas direcções.

A Região Autónoma dos Açores tem um parlamento e um governo perfeitamente legítimo com duração prevista na lei. Factos que não têm nada a ver com o poder local que também tem a sua legitimidade inquestionável. São níveis de poder diferentes, com competências diversas.

Tentar metê-los no mesmo saco é um profundo erro que só instala e beneficia a confusão no espírito das pessoas e as leva a acreditarem, cada vez menos, na política e nos políticos. Que eleições legislativas sejam legislativas e que autárquicas sejam autárquicas.

Oxalá que estas eleições, que agora se avizinham, sejam uma manifestação de maturidade cívica e política, quer por parte dos eleitores quer por parte dos partidos e respectivos estados-maiores.


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quinta-feira, setembro 30, 1993

A ARMADILHA DOS GOLFINHOS


FACE OCULTA


A ARMADILHA DOS GOLFINHOS



Embora a malfadada reportagem sobre a caça (?) dos golfinhos nos Açores já tenha feito correr muita tinta e levado à tomada de posições das mais variadas entidades, nunca será demais reflectir serenamente sobre o assunto.

Por várias razões. Desde logo porque se tratou de um trabalho que pretendia defender uma causa de alto teor moral, depois porque foi apresentado na televisão estatal que existe (ou devia existir) para garantir ao público informação isenta de sensacionalismos baratos e finalmente porque se trata de um tema importante e que a todos diz respeito.

E exactamente porque o filme se arrogava a defender valores morais elevados (a defesa da vida de seres vivos indefesos e inofensivos e do equilíbrio ecológico) desde logo era imperativo que o tema fosse tratado como maior seriedade e isenção. A eventual bondade (?) dos objectivos nunca poderia justificar meios menos correctos e/ou verdadeiros.

Por outro lado a RTP sabia ou deveria saber que uma reportagem (?) como a que foi apresentada iria ter uma grande repercussão negativa para o arquipélago quer em termos nacionais quer internacionais. O que, desde logo, deveria ter implicado por parte da RTP, dado o seu caracter oficial, o maior cuidado. A tendência natural do público é para considerar a televisão estatal, ao fim e ao cabo paga fortemente pelo bolço dos contribuintes, como uma fonte fidedigna e merecedora de crédito.

Ora é um dado adquirido que o tudo não passou de una cabala encenada com objectivos que não se conhecem na sua total extensão mas que poderão ter a ver com pressões e interesses internacionais menos límpidos, e que poderão até ter constituído uma forma de chantagem sobre o Governo Regional e a Região.

Vários dos intervenientes açorianos, se não a totalidade, foram induzidos em erro e estimulados para participar em actos que podem ser considerados ilegais, ou pelo menos, altamente irregulares. E quem fez a reportagem sabia isso muito bem. E, mesmo assim, não tiveram qualquer pejo em utilizar pessoas de boa fé e hospitaleiras. Sem atender aos prejuízos e dissabores que isso poderia vir a causar.

Durante muitos anos a caça e consumo de golfinhos foi uma prática perfeitamente legal nos Açores. Em algumas ilhas a carne de toninha era mesmo considerada um petisco especial, possivelmente como o consumo de cães ou de gatos na China! Uma questão fundamental de hábito, se se preferir.

Depois da proibição houve quem continuasse a caçar, ocasionalmente, o golfinho. Possivelmente com o mesmo espírito prevaricador com que respeitam os sinais de trânsito ou os limites de velocidade. Infracções que têm de ser vistas num contexto cultural em que o golfinho, com todo o respeito, é tido um peixe como outro qualquer, sem qualquer outro privilégio especial.
 De modo que a fazer uma reportagem sobre o tema teria que ter havido por parte dos autores a preocupação de ter filmado situações autênticas e não ter encenado farsas como foi o caso do restaurante ou mesmo da própria morte da toninha. Ou a tê-lo deveriam ter, antecipadamente, avisado que se tratava de cenas encenadas e montadas para tentar reproduzir o que os autores imaginaram que fosse a prática comum nos Açores.

A reportagem apresentada na RTP foi uma farsa ignóbil que não veio beneficiar nenhuma causa nobre.

A caça à toninha nos Açores é, hoje em dia, uma prática clandestina e em vias de extinção. Tudo o resto são mentiras descaradas de que não respeita nada, nem a dignidade das pessoas nem a idiossincrasia açoriana.

Não está, minimamente, em causa a ideia de que a caça do golfinho deva ser apoiada ou defendida. Nada disso, o golfinho é um mamífero simpático e amigável, nosso companheiro de rota nessa complexa jornada que é a vida e que connosco partilha, de forma positiva, um habitat imprescindível à nossa própria existência.

O que está em causa é um mau jornalismo e uma profunda falta de ética profissional e humana.


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quarta-feira, setembro 15, 1993

Os Dilemas do Mundo Moderno


FACE OCULTA

«A história sugere que o capitalismo é uma condição para a liberdade política. Não é, claramente, uma condição suficiente.»
Milion Friedman


OS DILEMAS DO CAPITALISMO MODERNO


As súbitas (?) e graves dificuldades com que se defronta o capitalismo, à escala mundial, revelam bem as suas fragilidades estruturais. Não só ninguém previu o actual estado de coisas como menos a sua severidade.

Uma Europa que se prepara para um casamento entre estados membros, com pompa e circunstância, vê-se, de um dia para o outro, com o espectro do desemprego galopante e a perspectiva de uma comunidade a várias velocidades.

De uma penada, o SME (Sistema Monetário Europeu) leva um golpe mortal e o futuro, pelo menos a médio prazo, da UEM (União Económica e Monetária) está claramente em causa. O que ontem parecia inevitável e ao virar da esquina está, hoje, quase no campo da utopia.

Objectivos considerados fundamentais pelos europeus para o seu desenvolvimento e equilíbrio entram, assim em hibernação. Tão somente porque as economias mundial e europeia entraram numa recessão grave, impedindo a concretização de metas ainda há um ano consideradas realistas.

Os próprios gigantes (Japão, USA e Alemanha) tremem.

Arrumado o papão comunista, ficou o capitalismo a braços com os seus reais problemas e que não são poucos nem pequenos (desemprego, baixa do poder de compra e mesmo fome, ambiente, racismo, xenofobia, guerras, etc.). E sobretudo começa a entrar em crise grave a menina dos olhos das democracias europeias avançadas: o estado providência. A própria Alemanha começa a elencar a redução de benefícios dos seus cidadãos.

Depois da euforia moneteirista de Reagan e Thacher, chegaram as respectivas facturas que não serão fáceis de pagar. Sobretudo porque se criou, entretanto, uma geração que apenas acredita no sucesso económico fulminante e que não quer esperar e muito menos apertar o cinto. Conquistaram-na para a religião do cifrão e, como todas as religiões, tem a força do dogma.

Falhadas as receitas tradicionais para a crise (aumento de impostos, diminuição do aumento de salários, redução de benefícios sociais e do consumo) num mundo que cada vez mais, e felizmente toma consciência da natureza limitada dos recurso naturais de que dispomos, novas perspectivas terão, forçosamente, que surgir.

Perspectivas que terão de ter como plano de fundo uma exaustiva reflexão política sobre os objectivos finais que se se pretendem e a partir daí sobre os meios de os atingir.

Na actual conjuntura já é lícito afirmar que a crise tem carácter estrutural e não deriva, apena, de acidentes de percurso ou de má gestão do partido X ou Y. Por muito incompetente que seja o ministro A ou B.

E, possivelmente, dever-se-á começar por inventariar os recursos naturais disponíveis. De nada servirá planear um crescimento económico que seja incompatível e com a qualidade de vida no planeta.

A seguir será importante pensar em termos de população mundial global. Se os dez milhões de portugueses pouco contam em termos ambientais que dizer dos milhares e milhões de chineses? O planeamento deverá basear-se em números à escala mundial. De que valerá um punhado de europeus prósperos face aos milhares de esfomeados do sul?

Apenas depois será fundamental definir o modelo social a atingir. Modelo que terá de ter em linha de conta as lições da protecção social excessiva das democracias europeias do norte, por um lado, e os excessos liberais dos Reagan-thatcheristas, por outro.

Contudo um cenário parece inevitável: a nova ordem mundial e nacional terá que ser mais equilibrada. As disparidades mundiais, nacionais e regionais terão que ser cada vez menores bem como as diferenças dentro de cada país.

Ao longo cortejo de direitos dos mais variados teores há que juntar, também, os respectivos deveres. Um aumento de direitos tem que ser, necessariamente, acompanhado de um aumento de deveres.

A condição essencial para a paz e o progresso é o equilíbrio. Enquanto perdurarem desequilíbrios significativos entre as nações e dentro destas entre cidadãos será sempre difícil manter um progresso estável.

Equilíbrio que não é sinónimo de igualitarismo basista e acrítico mas sim de igualdades de oportunidades para todos. Único princípio que poderá nortear, com sucesso, uma sociedade no dealbar do século 21.


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terça-feira, agosto 31, 1993

Um Cartão de Visita Amarrotado


FACE OCULTA


UM CARTÃO DE VISITA AMARROTADO



Quer se queira quer não, é um facto consumado que a grande porta de entradas e saídas do Pico é o porto da Madalena.

Com um aeroporto que teima em ser um simples apeadeiro aéreo ou mesmo uma passagem de nível aérea sem guarda, tal é a sua falta de importância e capacidade para responder às necessidades da ilha, as ligações marítimas com a Horta continuam a ser cruciais.

Não que não seja importante manter uma ligação regular, constante e fecunda entre as duas ilhas. O Pico e o Faial têm, fatalmente, que se entender e que aprofundar os laços que as unem, debatendo os interesses comuns e aligeirando as velhas tricas bairristas.

O que não é, nem saudável nem desejável, é que um número crescente de picoenses ou pessoas que demandam o Pico se vejam forçadas a recorrer, cada vez mais, ao Faial para conseguirem entrar e sair desta ilha. De facto, é cada vez maior o número de pessoas do Pico ou que para cá se dirigem que se vêem literalmente obrigadas a usar o aeroporto da Horta para fugirem ao martírio do aeroporto da Terceira e às frustrações dos cancelamentos de voos para o Pico.

O aeroporto do Pico tem estatuto menor, quer no que diz respeito às condições de operacionalidade quer em termos de prioridade de utilização. E pronto!

Da mesma forma, para um grande número de cabeças e canal entre ilhas Pico e Faial tem um sentido privilegiado. Para essas pessoas as distâncias e as dificuldades das travessias são, em termos psicológicos, diferentes. Ou o mesmo é dizer: uma coisa é ir do Pico para o Faial e outra do Faial para o Pico!

De resto basta reparar num pequeno pormenor: quantos faialenses ou visitantes do Faial atravessam o canal atafulhados de malas, malinhas, embrulhos ou encomendas? Quantos em comparação com picoenses ou seus visitantes? E que diabo, com o devido respeito e sem complexos barristas ou outros, Pico é Pico e Faial é Faial.

De modo que o canal e respectivas estruturas em terra continuam a ser, quer se queira ou não, a ser a grande estrada do Pico. Por ali se entra e sai, por ali se é obrigado a ir ao médico, por ali se tem de ir se não há tempo a perder com malfadadas voltas e reviravoltas do aeroporto do Pico.

De modo que tudo isto levaria a crer que, pelo menos a nível do canal, as coisas merecessem uma atenção especial das várias entidades e autoridade intervenientes. Seria de esperar que, para além de terminais adequadamente dimensionados para o tráfego e com um mínimo de condições (sanitários, área abrigada, lugares sentados, telefones, carros de bagagens, etc.), houvesse uma grande preocupação na organização e gestão das travessias.

Coisas que até têm pouco a ver com dinheiro: compatibilização dos horários das lanchas com os dos aviões nomeadamente da TAP e com as necessidades das pessoas nos dias que correm (não lembra ao diabo ter um horário de Inverno que termina às quatro da tarde, por exemplo), organização das chegadas e partidas em termos civilizados com definição de áreas delimitadas por protecções amovíveis, orientação da acomodação dos passageiros e da saída do barco pela tripulação, organização e tratamentos adequado das bagagens, etc., etc...

Já ninguém pode ver, nos dias que passam, a bagunça das lanchas do Pico: pessoas umas em cima das outras, atropelando-se, acotovelando-se, arrastando malas às costas por entre multidões que não se afastam. Ainda por cima para viagens que não estão, minimamente pensadas para servir os interesses dos utentes mas que se baseiam em tradições e conceitos totalmente obsoletos.

As lanchas do canal são ou não um serviço público?

Quando deixará a travessia do canal de ser apenas mote para poetas e intervenções parlamentares e se irá transformar numa questão concreta e plenamente assumida pelo governo, pelas autarquias e demais entidades.

O canal foi palco de actos de grande abnegação e coragem e ferramenta de grandes homens do Pico. Não os esquecemos e rendemos-lhes homenagem sentida.

Mas até quando vai continuar a balda?

Talvez o canal seja um cartão de visita destas ilhas. Tem grandeza e beleza para isso. Mas não passa, ainda, de um cartão amarrotado e bem.



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domingo, agosto 15, 1993

O Holocausto de Serajevo e a Hipocrisia Ocidental


FACE OCULTA


«Não há guerras justas. Quando muito há guerras inevitáveis.»

       
               O HOLOCAUSTO DE SERAJEVO E A HIPOCRISIA OCIDENTAL       
  

Quando for trucidado, com requintes de malvadez, o último habitante trucidável de Seravejo, estará completa mais uma página bem negra da história moderna da Europa.

Depois correrão mais umas toneladas de lágrimas de crocodilo e, eventualmente, far-se-á um monumento aos mártires anónimos. As flores e os epitáfios tomarão o lugar da ajuda humanitária (?) que, então, já não será necessária. Possivelmente poderá ir para as previsíveis atrocidades que irão esfrangalhar a África do Sul e o que sobrar de Angola.

O genocídio está quase concluído apesar da diplomacia de punhos de renda de Owen e Vance e os números falam por si: 139.000 mortos e desaparecidos, 68.000 feridos graves, 3 milhões de refugiados, 38 cidades gravemente destruídas, 800 mesquitas demolidas, 200 igrejas destruídas, 3 milhões de pessoas com poder, 2,5 milhões de pessoas sem água!

Os muçulmanos da Bósnia, no centro da Europa, foram, pura e simplesmente, dizimados com a perfeita complacência desta e por uma imperdoável ausência de coragem política. As democracias europeias provaram até à saciedade a sua fragilidade, as suas lideranças balofas e bem instaladas e uma lamentável incapacidade diplomática.

A Europa não percebeu, desde o princípio, o que se estava a passar na antiga Jugoslávia, tendo chegado ao ponto de decretar embargos de armas que, na prática, só foram beneficiar um dos beligerantes. Não percebeu o carácter dos movimentos nacionalistas do velho país de Tito. Como também não percebeu que não era possível influenciar os acontecimentos sem envolver directamente ou que era inevitável o uso da força perante o falhanço da diplomacia. E, o que ainda é pior, ameaçou com o uso da força e, na hora da verdade, não a utilizou.

A Europa limitou-se a uma política retórica de salão.

As causas próximas e longínquas do conflito são muitas e complexas e não caberiam no âmbito deste artigo. Problemas históricos, étnicos e religiosos que a Europa não soube ou não quis perceber.

O que importa, acima de tudo, é perceber e denunciar a hipocrisia farisaica que prevaleceu entre as nações europeias que pelos vistos não aprenderam nada ou muito pouco com lições bem recentes. Ontem foi o holocausto dos judeus da Europa central, hoje o dos muçulmanos da Bósnia. Que se segue?

Enquanto nos preocupamos com as nossas crises, mirando o umbigo e brandindo estatísticas de desemprego, ao nosso lado milhares de seres humanos são sujeitos às mais degradantes sevícias e ao extermínio para não falar dos desalojados. A guerra dos Balcãs está a gerar a maior deslocação de europeus desde a 2ª Guerra Mundial.

Faz lembrar um cidadão muito preocupado/a em retocar a pintura ou consertar o cabelo enquanto um transeunte, bem ao seu lado, agoniza por falta de ajuda.

A Europa tem, ninguém o nega, problemas económicos e sociais. Mas que são eles perante o que está a passar com milhões de cidadãos que perderam tudo ou quase tudo? Mesmo a própria dignidade e a vida.

É bem provável que ainda não seja desta que vamos aprender a lição ou seja aonde pode levar a falta de solidariedade, de coragem e lucidez. Ou, se calhar, o problema é mesmo de fundo e o que acontece é que não somos capazes de aprender a não ser aquilo que nos toca mais directa e pessoalmente. Se calhar a nossa abastança ocidental já fez-nos adormecer a consciência colectiva.

Ontem Dachau e Treblinka, hoje Sarajevo.

Anátemas que atestam o carácter mimado das nossas democracias e flacidez das nossas lideranças.


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sexta-feira, julho 30, 1993

O RENDER DA GUARDA


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A liberdade de imprensa não é um fim em si mesmo mas um meio para o objectivo de uma sociedade livre
Felix Franfurter

O RENDER DA GUARDA




A passagem de testemunho da direcção do Ilha Maior é uma excelente oportunidade para uma reflexão sobre o papel e a importância da imprensa. Sobretudo tendo em atenção as intenções, reiteradamente, anunciadas de manutenção da linha editorial e de intervenção do jornal.

E é bom que assim seja porque o Ilha Maior tem estado no caminho certo, pese um ou outro acidente de percurso, mas muito poucos. Ao longo destes cinco anos afirmou-se como um jornal de toda a ilha e de todos os picoenses. Se mais longe não foi, foi porque alguns dos «velhos» colaboradores não colaboraram tanto quanto podiam e porque o recrutamento de novos é tarefa bem difícil.

E a subsistência de um jornal com as características deste passa por um conjunto muito grande de boas vontades e de carolice. O mercado potencial é muito exíguo e os custos de produção são significativos. Mas o Pico tinha necessidade de um jornal com as características deste e ele aí está. Parabéns ao Director que saiu, palavras de estímulo para o que entrou.

O «segredo» do Ilha Maior assentou em dois pilares essenciais. Por um lado procurou adoptar uma postura de ilha, de abordagem dos problemas de uma forma global, fugindo à tentação do concelho. Por outro esteve sempre aberto a toda a gente: dos partidos, dos concelhos, das religiões, etc.

Um jornal só pode ter força e ser um veículo de pregresso e liberdade enquanto for inteiramente aberto ao mundo e às pessoas. No momento em que caia na tentação de privilegiar, indevidamente, uma terra, um grupo ou uma crença passa a ser, apenas, a correia de transmissão de uma qualquer coisa. A partir daí terá força apenas para os apaniguados.

Naturalmente que qualquer grupo, partido ou crença tem toda a legitimidade para ter um jornal que sirva, essencialmente, os seus interesses específicos. Que vivam os jornais de partido, de bairro e de igreja mas que se assumam como tal. Que identifiquem claramente a quem pertencem e os objectivos que pretendem alcançar.

O que não se deve é tentar servir uma qualquer bandeira e pretender que serve todas. Esse é um equívoco fatal e que apenas poderá servir o retrocesso a falta de liberdade para não falar em interesses mais do que obscuros.

Garantias que sejam as necessárias regras de educação, respeito e qualidade, um jornal deve ser um fórum inteiramente aberto. Se o individuo X escreveu alguma coisa que o indivíduo Y acha que está mal ou não corresponde à verdade, o único remédio que este último tem é de pegar na pena e repôs o que acha que está mal. Em nenhuma circunstância se justifica que uma voz seja silenciada só porque põe em causa os interesses de quem quer que seja.

Essa é a regra de oiro da liberdade e do pluralismo.

A verdade é uma realidade muito complexa. A ponto de podermos falar mais de verdades do que propriamente de verdade. A verdade, propriamente dita, é, possivelmente, um somatório complexo de uma miríade de verdades. Quantos de nós já mudou de verdade ou de verdades, várias vezes? O que, hoje, nos parece definitivo e indiscutível quantas vezes não nos irá parecer pueril, amanhã?

É neste pressuposto crucial que deve assentar uma imprensa livre e pluralista. E é com esta imprensa que se promovem os cidadãos nas mais variadas vertentes (sociais, culturais e económica) dado que quanto mais debate houver e mais pontos de vista foram veiculados mais próximo as sociedades estarão da realidade e, o mesmo é falar, da possibilidade de promoverem o progresso.

O sectarismo, o obscurantismo e a censura só servem a corrupção e a estagnação.

Os dados estão lançados. Compete, agora, aos picoenses de todos os quadrantes credos e origens darem o seu contributo para o debate sem preconceitos ou tabus. Os limites só devem ser os da seriedade, do rigor, do respeito e da qualidade. Que todas as Bandeiras desfraldem ao vento.


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quinta-feira, julho 15, 1993

O Benfica - Sporting da política


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«A política, como o futebol, vive de craques»
Peter Stein


O BENFICA – SPORTING DA POLÍTICA



Não há dúvidas que as eleições autárquicas são o acto político que mais se aproxima do futebol. Suscita grandes paixões e provoca um nunca acabar de «transferências» e de caça aos craques.

Mas se é cero que a carga partidária deve e deveria ser muito mais atenuada a nível deste tipo de eleições não é menis certo que se verificam desvios e atropelos que atingem foros de verdadeira pouca-vergonha. Com os partidos a tentarem roubar candidatos de outros ou menos candidatos a oferecerem os seus «serviços» ao partido que der mais.

O que só vem a provar que a carga partidária que a constituição Portuguesa ainda impõe para as eleições autárquicas, com a ilustre excepção das juntas de freguesia, é um erro que potencializa episódios caricatos que apenas desprestigiam a política e arrendam inúmeros cidadãos de participação política.

O poder local, mais do que qualquer outro, deve ter uma conotação e peso partidário muito diminuto. Porque é um poder tipicamente vocacionado para a solução dos problemas concretos e para o qual as grandes opções são mais de natureza local e prática do que de natureza ideológica ou doutrinária.

As questões de carácter são, tipicamente da esfera do parlamento e do governo. Embora, também aí, não esgotam, bem longe disso, as questões doutrinárias e porque a voz das minorias, numa democracia que se preze, também deve chegar ao céu. Até porque os scores eleitorais dos grandes partidos tem muito a ver com técnicas de marketing e paixões clubistas.

Mas tudo isso é mais grave, de facto, a nível do poder local. Não só deveria ser possível a apresentação de candidaturas independentes como os próprios partidos deviam preocupar-se mas com uma atitude política pela positiva: abrir as suas listas a cidadãos com prestígio local – os chamados «homens bons» que, felizmente, ainda existem por todo esse país. E não preocuparem-se apenas em ganhar, vorazmente, câmaras e juntas de freguesias para depois tentarem tirar ilações e dividendos políticos indevidos, extrapolando conclusões e resultados não extrapoláveis.

Como, por exemplo, a oposição a tentar derrogar, em sede de poder local, a legitimidade do governo e do parlamento. Ou, ao contrário, a maioria a tentar desvalorizar os resultados que não lhe são favoráveis.

Eleições autárquicas e legislativas são muito diferentes, quer nas funções e competências que no significado político. Tentar negar isso é, pura e simplesmente, falta de seriedade política. Ambas são igualmente importantes, mas são muito diferentes.

Por isso confrange e desmobiliza o cidadão comum, a falta de dignidade que, cada vez mais, vem surgindo em torno das eleições autárquicas. Com uma caça desenfreada aos candidatos como se de verdadeiros goleadores se tratasse e de muitos desses eventuais goleadores a portarem-se como autênticos mercenários.

Os partidos, para além das questões ideológicas, deveriam ter noção de que têm, ou deveriam ter, uma importante função social. Os partidos deveriam capacitar-se que o seu principal papel não é conquistar eleições, com a mesma mentalidade que os clubes de futebol tentam ganhar campeonatos, mas a participação política a todos os níveis numa perspectiva de verdadeira pedagogia cívica.

Ganhar eleições com o propósito central de ganhar pelo poder é a mesma coisa que um clube de futebol ganhar eleições com o propósito central de coleccionar taças. Aonde ficam, nestes casos, os princípios?

Ganhar, nem que seja a feijões, é sempre bom. Mas ganhar o quer-que-seja, a qualquer preço, é sintoma de corrupção e menoridade moral e intelectual.

Senão valerá a pena que os craques da política passem, também, a ter passes que possam vender ao «clube» que dê mais. Assim mesmo. Será mais sério que andar meio mundo a tentar enganar o outro meio.



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quarta-feira, junho 30, 1993

O BORREGO EXPIATÓRIO


FACE OCULTA

«Cai mais mal a um ministro dizer asneiras do que fazê-las»
Cardeal de Retz



O BORREGO EXPIATÓRIO



Dada a circunstância institucionalizada de que ataques exteriores a um ministro, quer por parte da oposição quer da comunicação social, é passaporte seguro para ficar de pedra e cal no governo, surpreendeu o despedimento fulminante do ministro do Ambiente.

Não estão, obviamente, em causa o mau gosto e o despropósito de uma anedota que virou notícia de primeira página. O episódio foi grotesco e inadequado, mas não passou de uma gaffe.

Agora que una questão de lana-caprina como esta tenha conduzido a uma demissão em tempo recorde de um ministro de Cavaco foi, efectivamente, uma surpresa considerável. Sobretudo tendo em atenção que há semanas/meses se desenrola o folhetim da água de Évora que atinge em cheio a credibilidade do sistema de saúde em Portugal.

A anedota de borrego não passou de uma anedota e ninguém morreu por causa disso. Agora, a ineficiência e incompetência que se desenrolou no Hospital de Évora matou gente. E este facto que representa ou que devia representar a máxima falência de um sistema de saúde – a morte – não conduziu a nada que se aproxime do rigor com que foi tratado o coitado do borrego que, naturalmente, será daquelas pessoas sem graça e que nem sequer tem jeito para contar anedotas sem sentido das conveniências.

Pecados bem menores do que ser responsável por um sector tão importante e delicado como é o da saúde e não ser capaz de, com transparência e rapidez, fazer justiça e, sobretudo, repor, dentro do possível, compensações às famílias atingidas.

São níveis de responsabilidade bem diferentes, um responsável governamental contar uma anedota de humor negro em público ou gerir de ~modo completamente inadequado uma situação de desleixo, incompetência e irresponsabilidade que ceifou vidas humanas.

Contudo a nível das punições passou-se exactamente o contrário. Enquanto que o jogral frustrado levou um pontapé no fundo das costas, o ministro da crise continua no seu lugar, impávido e sereno.

Donde se poderá concluir, com uma lógica dificilmente refutável, que o que conta são as aparências e não a essência. Ficou mal o ministro contar, em público, uma anedota por muito tola que tenha sido, mas não fica mal que o ministro responsável por um sector essencial que claudicou e claudica de forma tão notória e trágica continue em funções.

Ou, como dizia há dias uma pessoa amiga, se calhar o que safou o Natalino é que não se lembrou de contar alguma anedota tola. Porque às tantas, se o tivesse feito, Já estaria no olho da rua!

De modo que terá que passar a fazer parte da cartilha dos ministros cavaquistas o mandamento crucial de não contar anedotas sobre a actuação dos colegas.

Ou então a anedota foi só o jeitinho que o primeiro-ministro arranjou para dar o fora a um colaborador que queria despachar. Matando, deste modo, dois coelhos de uma só cajadada: livra-se do indesejado e dá uma de moralista em tempo de crise.

Se calhar foi por isso que perdemos um borrego expiatório e mantivemos um Alumínio de Carvalho.



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terça-feira, junho 15, 1993

O PRESERVATIVO SOCIAL


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«A corrupção é uma bola de neve: quando começa a rolar tem de aumentar»
Charles Colton


O PRESERVATIVO SOCIAL


A corrupção é um dos temas, decididamente, em moda. Pese, embora, a sua provecta idade dado que é, pelo menos, tão velha como a salve-rainha!

E isto por razões bem simples e que têm a ver com os profundos desígnios e apetências do ser humano. Aonde há homens e, simultaneamente, oportunidades de dinheiro ganhável sem esforço, aí está o caldo entornado.

E a testar tudo isto aí estão os escândalos de corrupção a acontecer bem fora do terceiro mundo e das ditas repúblicas das bananas. Bem no centro da Europa para que não restem dúvidas, a quem quer que seja, de que a corrupção não conhece raças ou culturas. Apenas se exprime e executa de forma diferente.

Como também não poupa partidos, ideologias ou mesmo religiões como está sobejamente provado. Até Cristo teve que correr os vendilhões (corruptos) do templo e o Corão prescreve o corte de mão aos ladrões.

O que talvez houvesse era, noutros tempos e épocas, mais pudor e menos meios de comunicação social. Mas a doença (?) é velha, congénita e não tem cura conhecida.

Mas deixar que o poder político e económico se confundam a ponto de não se saber aonde começa um e acaba outro é tão perigoso como fazer amor sem preservativo! Se este último pode levar à sida, propriamente dita, o outro pode levar à ruína e ao caos que não deixam de ser uma forma social de sida.

Embora não seja possível estabelecer fronteiras rigorosas e definitivas entre o que é político e económico, não deixa de ser exequível estabelecer regras do jogo, claras e simples. A política e economia não podem estar de costas viradas – a história bem o tem demonstrado. Mas também não querem estar amancebadas.

Os políticos e os agentes económicos têm que se entender e cooperar, num clima de diálogo e consenso. Qualquer política para ter sucesso necessita de se desenvolver em tecido económico saudável bem como qualquer investimento para ter viabilidade precisa de políticos, lúcidos e pragmáticos.

Fazer política sem dinheiro ou fazer dinheiro sem políticos são duas vertentes da mesma utopia. Como também parece não ser possível fazer qualquer uma dessas ou as duas sem corrupção.

Constatação que não sendo uma grande alegria também não deveria ser uma grande tragédia. O que é, realmente, importante não é erradicar em absoluto a corrupção, embora fosse um propósito nobre, mas sim impedir que ela se torne num cancro, uma verdadeira sida social.

Porque a corrupção, uma vez liberta de limites, pode levar ao total bloqueio de uma sociedade ou de um país. Os exemplos abundam mas o Brasil e a Itália serão, porventura, dois casos, particularmente, elucidativos. Duas sociedades com perfeita viabilidade mas que chegaram a impasses terríveis.

A cultura da ostentação social e do status é, possivelmente, a grande responsável pelo recrudescimento da corrupção. As pessoas querem ser, cada vez, mais ricas e, cada vez, mais cedo. Os jovens não querem esperar e, muito menos, fazerem grandes esforços para ascenderem à opulência e à abundância até porque são esses os objectivos que parecem atraí-los; curtir o mais possível no menor espaço de tempo.

Abaixo a cultura do sacrifício e da miséria e do prémio no reino dos céus. Mas que a besta de barriga vazia não dê lugar à besta de barriga sem medida.

A corrupção existe em todo lado e vai existir sempre. O que é fundamental é não deixar: que ela se transforme numa verdadeira doença social, altamente infecciosa.

Há que, rapidamente, inventar o preservativo social.



P E D R O  D A M A S C E N O