terça-feira, agosto 31, 1993

Um Cartão de Visita Amarrotado


FACE OCULTA


UM CARTÃO DE VISITA AMARROTADO



Quer se queira quer não, é um facto consumado que a grande porta de entradas e saídas do Pico é o porto da Madalena.

Com um aeroporto que teima em ser um simples apeadeiro aéreo ou mesmo uma passagem de nível aérea sem guarda, tal é a sua falta de importância e capacidade para responder às necessidades da ilha, as ligações marítimas com a Horta continuam a ser cruciais.

Não que não seja importante manter uma ligação regular, constante e fecunda entre as duas ilhas. O Pico e o Faial têm, fatalmente, que se entender e que aprofundar os laços que as unem, debatendo os interesses comuns e aligeirando as velhas tricas bairristas.

O que não é, nem saudável nem desejável, é que um número crescente de picoenses ou pessoas que demandam o Pico se vejam forçadas a recorrer, cada vez mais, ao Faial para conseguirem entrar e sair desta ilha. De facto, é cada vez maior o número de pessoas do Pico ou que para cá se dirigem que se vêem literalmente obrigadas a usar o aeroporto da Horta para fugirem ao martírio do aeroporto da Terceira e às frustrações dos cancelamentos de voos para o Pico.

O aeroporto do Pico tem estatuto menor, quer no que diz respeito às condições de operacionalidade quer em termos de prioridade de utilização. E pronto!

Da mesma forma, para um grande número de cabeças e canal entre ilhas Pico e Faial tem um sentido privilegiado. Para essas pessoas as distâncias e as dificuldades das travessias são, em termos psicológicos, diferentes. Ou o mesmo é dizer: uma coisa é ir do Pico para o Faial e outra do Faial para o Pico!

De resto basta reparar num pequeno pormenor: quantos faialenses ou visitantes do Faial atravessam o canal atafulhados de malas, malinhas, embrulhos ou encomendas? Quantos em comparação com picoenses ou seus visitantes? E que diabo, com o devido respeito e sem complexos barristas ou outros, Pico é Pico e Faial é Faial.

De modo que o canal e respectivas estruturas em terra continuam a ser, quer se queira ou não, a ser a grande estrada do Pico. Por ali se entra e sai, por ali se é obrigado a ir ao médico, por ali se tem de ir se não há tempo a perder com malfadadas voltas e reviravoltas do aeroporto do Pico.

De modo que tudo isto levaria a crer que, pelo menos a nível do canal, as coisas merecessem uma atenção especial das várias entidades e autoridade intervenientes. Seria de esperar que, para além de terminais adequadamente dimensionados para o tráfego e com um mínimo de condições (sanitários, área abrigada, lugares sentados, telefones, carros de bagagens, etc.), houvesse uma grande preocupação na organização e gestão das travessias.

Coisas que até têm pouco a ver com dinheiro: compatibilização dos horários das lanchas com os dos aviões nomeadamente da TAP e com as necessidades das pessoas nos dias que correm (não lembra ao diabo ter um horário de Inverno que termina às quatro da tarde, por exemplo), organização das chegadas e partidas em termos civilizados com definição de áreas delimitadas por protecções amovíveis, orientação da acomodação dos passageiros e da saída do barco pela tripulação, organização e tratamentos adequado das bagagens, etc., etc...

Já ninguém pode ver, nos dias que passam, a bagunça das lanchas do Pico: pessoas umas em cima das outras, atropelando-se, acotovelando-se, arrastando malas às costas por entre multidões que não se afastam. Ainda por cima para viagens que não estão, minimamente pensadas para servir os interesses dos utentes mas que se baseiam em tradições e conceitos totalmente obsoletos.

As lanchas do canal são ou não um serviço público?

Quando deixará a travessia do canal de ser apenas mote para poetas e intervenções parlamentares e se irá transformar numa questão concreta e plenamente assumida pelo governo, pelas autarquias e demais entidades.

O canal foi palco de actos de grande abnegação e coragem e ferramenta de grandes homens do Pico. Não os esquecemos e rendemos-lhes homenagem sentida.

Mas até quando vai continuar a balda?

Talvez o canal seja um cartão de visita destas ilhas. Tem grandeza e beleza para isso. Mas não passa, ainda, de um cartão amarrotado e bem.



P E D R O  D A M A S C E N O



domingo, agosto 15, 1993

O Holocausto de Serajevo e a Hipocrisia Ocidental


FACE OCULTA


«Não há guerras justas. Quando muito há guerras inevitáveis.»

       
               O HOLOCAUSTO DE SERAJEVO E A HIPOCRISIA OCIDENTAL       
  

Quando for trucidado, com requintes de malvadez, o último habitante trucidável de Seravejo, estará completa mais uma página bem negra da história moderna da Europa.

Depois correrão mais umas toneladas de lágrimas de crocodilo e, eventualmente, far-se-á um monumento aos mártires anónimos. As flores e os epitáfios tomarão o lugar da ajuda humanitária (?) que, então, já não será necessária. Possivelmente poderá ir para as previsíveis atrocidades que irão esfrangalhar a África do Sul e o que sobrar de Angola.

O genocídio está quase concluído apesar da diplomacia de punhos de renda de Owen e Vance e os números falam por si: 139.000 mortos e desaparecidos, 68.000 feridos graves, 3 milhões de refugiados, 38 cidades gravemente destruídas, 800 mesquitas demolidas, 200 igrejas destruídas, 3 milhões de pessoas com poder, 2,5 milhões de pessoas sem água!

Os muçulmanos da Bósnia, no centro da Europa, foram, pura e simplesmente, dizimados com a perfeita complacência desta e por uma imperdoável ausência de coragem política. As democracias europeias provaram até à saciedade a sua fragilidade, as suas lideranças balofas e bem instaladas e uma lamentável incapacidade diplomática.

A Europa não percebeu, desde o princípio, o que se estava a passar na antiga Jugoslávia, tendo chegado ao ponto de decretar embargos de armas que, na prática, só foram beneficiar um dos beligerantes. Não percebeu o carácter dos movimentos nacionalistas do velho país de Tito. Como também não percebeu que não era possível influenciar os acontecimentos sem envolver directamente ou que era inevitável o uso da força perante o falhanço da diplomacia. E, o que ainda é pior, ameaçou com o uso da força e, na hora da verdade, não a utilizou.

A Europa limitou-se a uma política retórica de salão.

As causas próximas e longínquas do conflito são muitas e complexas e não caberiam no âmbito deste artigo. Problemas históricos, étnicos e religiosos que a Europa não soube ou não quis perceber.

O que importa, acima de tudo, é perceber e denunciar a hipocrisia farisaica que prevaleceu entre as nações europeias que pelos vistos não aprenderam nada ou muito pouco com lições bem recentes. Ontem foi o holocausto dos judeus da Europa central, hoje o dos muçulmanos da Bósnia. Que se segue?

Enquanto nos preocupamos com as nossas crises, mirando o umbigo e brandindo estatísticas de desemprego, ao nosso lado milhares de seres humanos são sujeitos às mais degradantes sevícias e ao extermínio para não falar dos desalojados. A guerra dos Balcãs está a gerar a maior deslocação de europeus desde a 2ª Guerra Mundial.

Faz lembrar um cidadão muito preocupado/a em retocar a pintura ou consertar o cabelo enquanto um transeunte, bem ao seu lado, agoniza por falta de ajuda.

A Europa tem, ninguém o nega, problemas económicos e sociais. Mas que são eles perante o que está a passar com milhões de cidadãos que perderam tudo ou quase tudo? Mesmo a própria dignidade e a vida.

É bem provável que ainda não seja desta que vamos aprender a lição ou seja aonde pode levar a falta de solidariedade, de coragem e lucidez. Ou, se calhar, o problema é mesmo de fundo e o que acontece é que não somos capazes de aprender a não ser aquilo que nos toca mais directa e pessoalmente. Se calhar a nossa abastança ocidental já fez-nos adormecer a consciência colectiva.

Ontem Dachau e Treblinka, hoje Sarajevo.

Anátemas que atestam o carácter mimado das nossas democracias e flacidez das nossas lideranças.


  P E D R O  D A M A S C E N O