terça-feira, agosto 26, 2003

Tempos de come-come e bebe-bebe



Tempos de come-come e bebe-bebe



Nestes tempos de “come-come e bebe-bebe” em que se perde, cada vez mais, a noção de refeição é oportuno reflectir um pouco sobre essa actividade imemorial que é o comer e beber.

Comer e beber são, antes de tudo, necessidades fundamentais da vida. Tão fundamentais que no advento do homem geravam, mesmo, a sua actividade principal. Os nossos antepassados mais longínquos passavam, possivelmente, a maior parte do seu tempo à procura dos imprescindíveis alimentos.

De lá até hoje - sociedade de consumo – passamos por muitas fases: pela fome pura e simples, pela escassez, pelos ciclos das estações e, sobretudo, pela alimentação remediada, fruto de muita criatividade e improvisação.

Até chegarmos a hoje, a sociedade da super abundância sem ciclos, com as “alternativas permanentemente oferecidas”!. As novidades próprias das diferentes estações desapareceram, havendo sempre de tudo, todo o ano.

Os produtos caseiros, rústicos, desiguais são, obsessivamente substituídos pela norma, pela estandardização, pela embalagem estanque, pela assepsia. Exige-se “pureza”, certificado de origem, rótulo, etc. Pede-se pão branco, arroz branco e açúcar branco – perde-se a broa, o pão caseiro, o arroz com cascas e impurezas à mistura mas mais perto da realidade.

Solitário, stressado e inseguro o homem moderno devora e não come. Consome produtos alimentares inventados para lhe captarem o apetite desmesurado que surge como válvula compensadora das suas frustrações diárias.

Como disse um médico ilustre “o come-come e o bebe-bebe triunfam enquanto morre a refeição”!

O prazer da comunhão à mesa, saboreando refeições confeccionadas com autenticidade e cuidado são substituídas por actos solitários de devorar “hamburgers”, pizzas, batatas pré-fritas, croissants etc., possivelmente acompanhados com música de furar os tímpanos. Comer, condição indispensável de vida, transforma-se, assim, em comer como factor de risco de vida com a obesidade a crescer em flecha. Enterrou-se a “slow food” (comida lenta) e deu-se lugar à “fast food”Comida rápida).

A obesidade já atingiu, “graças” aos seus estonteantes números, o estatuto de doença de direito próprio e causa de morte. Em Portugal cerca de 50% da população é obesa. Os mais jovens e os mais velhos, são cada vez mais gordos mais cedo. Ao contrário do que seria de esperar a abundância gera pobreza: come-se mais e pior. A falta de tempo da vida moderna e as modas levam a que, progressivamente, se cozinhe menos em casa dependendo das refeições pré-cozinhadas e dos anúncios da TV que nos dizem, a toda hora do dia e da noite, o que devemos comer.

Corrida inevitável para a doença e para uma morte precoce que nós açorianos – porque ainda estamos a tempo – poderemos evitar, retomando os nossos hábitos ainda bem próximos da refeição comungada e caseira, geradora de saúde e bem estar. Havendo para isso que tirar tempo para cozinhar e para comer, retomado tantas práticas que perdemos quando nos deparamos com as ofertas estonteantes dos super e hipermercados que nos modelam os nossos próprios desejos a uma lógica de mercado.

Que vivam as nossas “velhas” refeições em torno de uma mesa de família confeccionadas com produtos da terra, menos lindos, mas certamente muito mais nutritivos e autênticos. Refeições que integrem os conhecimentos e “segredos” passados de geração em geração, de avó para neta. Evitando a obsessão de comer e voltando à alegria das tradicionais e simples refeições mediterrânicas regadas, moderadamente, por autêntico vinho de uvas.

Hábitos que a ciência, agora, se não cansa de elogiar. Afinal antigamente não se comia assim tão mal em Portugal.

Tudo isto à mistura com o culto da magreza excessiva que, tantas vezes, mais não é que uma reacção neurótica às disfunções sociais e humanas de que, progressivamente, padecem as nossas sociedades ocidentais da superabundância. O que leva – suprema ironia - que à medida que as pessoas se tornam mais gordas por força de uma indústria alimentar mediática e super poderosa, gerem sentimentos de culpa que, quase sempre, conduzem a novos excessos alimentares!

Estamos, indubitavelmente, em tempos de come-come e bebe-bebe e não há festa, entre nós, que seja festa se não tiver comes e bebes.




P E D R O D A M A S C E N O

terça-feira, agosto 12, 2003

A lição dos incêndios em Portugal

A lição dos incêndios em Portugal


A tragédia que tem varrido o país – para além de devastadores prejuízos pessoais e materiais - não poderá passar sem uma reflexão minimamente profunda. A não ser assim correremos o risco de deixar a porta aberta para todos os outros desastres naturais que poderão seguir-se (inundações, ventos ciclónicos, derrames de crude, etc.) nos venham, também, fustigar impiedosamente.

E a primeira lição é, sem dúvida, a confirmação das alterações climatéricas que estão a ocorrer no globo e para cuja possibilidade temos sido sobejamente alertados. Os incêndios de Portugal são uma das facetas do que está a passar a nível global: desde a seca profunda da Europa Central até a temperatura de Londres a ultrapassar a do Cairo! Pretender que desvios tão profundos do padrão habitual como os presentes são mera coincidência ou ocorrência cíclica será de uma temeridade e insensibilidade inaceitáveis.

Até ao eventual aparecimento de provas científicas inabaláveis em contrário, a presente situação só deve ser entendida como mais um seriíssimo aviso de que estamos a assistir, em tempo real, a uma degradação grave do ambiente como conseqüência da exploração desenfreada dos nossos recursos naturais e um aumento exponencial da poluição atmosférica. Só assim estaremos em condições de procurar e encontrar soluções alternativas.

Nunca é de mais recordar a cimeira do Rio de Janeiro que lançou as bases para o acordo de Quioto (sintomaticamente não subscrito pela Administração Bush – sendo que os USA são, como toda a gente sabe, os maiores poluidores a nível mundial) que visava, precisamente, reduzir a emissão de gases para atmosfera. E como a generalidade das pessoas só se lembra de Santa Bárbara quando troveja, não consegue estabelecer uma relação causa-efeito entre o seu consumo destemperado e as suas conseqüências inevitáveis como a degradação galopante do ambiente e da qualidade de vida que trazem consigo o desequilíbrio e a doença.

E o que se tem passado no nosso país tem como primeira causa esse fenômeno global que tem atingido milhões de pessoas. Nós somos apenas mais um dos pico desse imenso icebergue, que à semelhança do Titanic, teimamos em fingir não ver. A causa maior tem sido, de facto, a onda de calor que varre o país mas, pergunta-se, porque razão ultrapassamos, nalguns dias, as temperaturas do Médio Oriente?

E depois é que vêm as grandes mazelas de Portugal: a falta de meios e organização, a falta de planeamento, o improviso, a falta de iniciativa do estado, etc, etc. Mazelas que temos que assumir colectivamente e que vêm de muito longe não procurando bodes expiatórios para, mais uma vez, tentar a esconder a nossa realidade de parente afastado da comunidade européia.

Ser da Europa não é, ou pelo menos não devia ser, exibir apenas um passaporte da comunidade.

Por entre os bombeiros exaustos e os populares que combatem, denodadamente e sem descanso, as chamas pode ver-se, nitidamente, um país que arde não apenas pelo fogo que o consome as nossas florestas mas pelo fogo que consome a nossa vida colectiva deixando-nos quase indefesos perante fenômenos naturais que temos obrigação de prever e prevenir. Não baste apenas dizer que estão acionados todos os meios disponíveis e ... bom, que seja o que Deus quiser.

É, também, preciso ver e perceber e ver as nossas debilidades e a nossa falta de sentido de segurança real. Muito mais importante que Forças Armadas (FA) para combater guerras serão FA capazes de actuar com eficácia e rapidez em cenários de catástrofes naturais complementando os meios civis disponíveis. As nossas FA terão ter logística e capacidade para assegurar a nossa real segurança e dos nosso bens e não apenas para hipotéticos conflitos armados. Não se pretende que o país se desarme mas apenas que assuma as nossas reais prioridades.

E da parte de qualquer de nós, individualmente, terá que haver a noção que são os pequenos gestos do dia a dia que mais contam: o papel e outros materiais inflamáveis que se deitam fora em qualquer lugar, o cigarro mal apagado que se atira pela janela do carro, a utilização de fontes de calor (fogueiras, fogões, etc) no exterior, a falta de limpeza das florestas e espaços públicos, etc. Não basta apenas chorar em frente da TV por causa de imagens angustiantes nem depositar uma nota, para pacificar consciência, em qualquer das contas abertas para sinistrados.

Não podemos continuar a ser um país de caridadesinhas. Hoje foi ele amanhã posso ser eu. Há que assumir, colectivamente,as responsabilidades e participar activamente na nossa vida cívica e política de modo a que possamos atingir patamares de segurança aceitáveis. Vamos pagar impostos mas vamos exigir do estado as contrapartidas adequadas para assegurar a nossa segurança, seja na estrada seja perante uma calamidade natural.

Temos que acabar com o Xico Esperto que não paga impostos par dar lugar ao cidadão que cumpre as suas obrigações fiscais (dando de barato que terão de ser equilibradas e socialmente justas) mas que depois estará em condições de exigir, com firmeza, um estado responsável, eficiente e solidário.

P E D R O D A M A S C E N O