sexta-feira, maio 28, 1993

A FACA DE DOIS GUMES


FACE OCULTA

«Será lícito basear toda a vida pública no pressuposto de que à mulher de César não basta ser séria, há que percebê-lo?»
Diana Andringa


                                              A FACA DE DOIS GUMES       


Este fim de século representa, certamente, a consolidação do poder da comunicação social.

Jamais na história da humanidade foi tão forte a sua influência. Por um conjunto variado e complexo de razões, que vão desde uma portentosa panóplia tecnologia até um consumismo de notícias vertiginoso. Nunca a competição a nível da informação foi tão feroz.

A recente guerra do Golfo foi o exemplo mais acabado da volúpia noticiosa. Não fora algumas limitações impostas pelos militares e teríamos assistido a uma guerra «ao vivo», porventura com contendores a darem o último suspiro em directo ou com pivots de atrocidades sortidas.

Em definitivo, as barreiras do tempo e do espaço caíram. E, com elas, o sentido das proporções. Noticia-se tudo, mas rigorosamente tudo, que possa ser vendável. Sem peias de qualquer ordem – seja em atenção à diversidade do público utente, do assunto, da veracidade dos factos e mesmo da honra em bom nome de cidadãos.

O critério tem, cada vez mais, a ver com o sensacionalismo e o imediatismo das notícias do que o seu conteúdo ou veracidade. O que é trágico tendo em atenção a grande força, em termos de formação da opinião pública, que os órgãos de comunicação social, nomeadamente a televisão, têm.

Naturalmente que há excepções e existem profissionais altamente isentos e sensatos. Mas a grande vaga de fundo é, infelizmente, no pior dos sentidos: sensacionalista e irresponsável. Há como que uma corrida frenética para a captação de um mercado de consumidores que, banalizados por um quotidiano cinzento e baço, procuram informação de pacote para uso instantâneo.

E o mais preocupante é que, para a grande massa dos consumidores de notícias, o q eu se diz nas notícias da televisão, por exemplo, é o ponto assente. Por muito absurda ou mal fundamentada que seja a notícia. Seja sobre os efeitos, nefastos ou positivos, de um medicamento seja sobre os actos, praticados ou não, por um cidadão proeminente ou não.
Não se questiona, em qualquer versão, a liberdade de imprensa ou de opinião. Esse é um dos pilares da democracia. Mas, em contrapartida há que defender o direito dos cidadãos a uma informação idónea e ao bom nome e à honra.

A liberdade nunca deverá ser pretexto ou meio para vender bens de consumo que ponham em causa essa mesma liberdade. Ou seja, os eventuais efeitos perversos da liberdade terão de ser, sempre, muito menores que as vantagens. Sob pena de liberdade não vele a pena. Até porque são, muitas vezes, os adversários mais ferozes da liberdade os que dela tiram melhor partido.

É certo que a lei concede a possibilidade do direito de resposta e que existe, sempre, a hipótese do recurso aos tribunais. Mas, todos o sabemos, o mal causado é, muito frequentemente, irreversível. Porque a justiça é lenta e porque o primeiro impacto tem sempre maior força.

O recente suicídio do ex-primeiro ministro francês, Pierre Bérégovoy, é, porventura, um excelente exemplo que pode acontecer quando não exerce o múnus jornalístico com sensatez e respeito pela pessoa humana. Não é, obviamente, líquido que o Senhor Bérégovoy se tenha suicidado por causa da campanha que contra ele surgiu na imprensa francesa. Mas é lícito extrapolar que essa campanha tenha desempenhado um papel importante na génese do seu acto desesperado. Nada estava provado quanto à sua idoneidade, existiam apenas eventuais indícios. No entanto isso não impediu que a sua honra e o seu nome fossem questionados publicamente. O que poder muito bem ter sido a gota que fez transbordar o cálice.

O fascismo e o nazismo são facas de um só gume: só servem para amordaçar o cidadão e perverter a vida.

Mas a liberdade é uma arma de dois gumes. Tanto serve para proteger os cidadãos e dar vida como para agredir e tirar a vida. Tudo depende como for utilizada. Mas há um princípio universal e supremo que deverá estar sempre presente: numa liberdade de alguém deverá ser conseguida à custa da liberdade de outrem.



P E D R O  D A M A S C E N O

sábado, maio 15, 1993

O Revivalismo Burocrático


FACE OCULTA

«A burocracia é a antítese da democracia»
Go Grimmond


O REVIVALISMO BUROCRÁTICO


Durante algum tempo, pouco, chegou a parecer que a modernização administrativa tinha, finalmente, chegado a Portugal. Houve mesmo um anúncio, profusamente passado na televisão, em que o martelar estridente dos carimbos era substituído pelo sussurro sibilante dos computadores. O homem da pala e das mangas-de-alpaca era, com pompa e circunstância, substituído por jovens – atraentes, simpáticos e eficientes. 

Chegou, mesmo, a haver alguns decretos governamentais que deram um toque de mudança como foi o caso da abolição do papel selado e da obrigatoriedade do reconhecimento notarial dos atestados médicos. Antecedidos de preâmbulos que criticavam os maus hábitos da administração pública e apontava para a «despenalização» burocrática do cidadão comum, soterrado sob uma avalanche de regulamentos.

Pretendia-se, até, que a vida passasse a ser muito facilitada a quem demandasse as mais variadas repartições públicas. O funcionário público era solicitado a prestar um atendimento correcto, cooperante e eficiente. Pretendia-se eliminar a ideia de que o cidadão é, à partida, um prevaricador e um empecilho e reforçar o conceito de que, bem pelo contrário, deve ser considerado uma pessoa de bem e merecer um tratamento adequado.

Parecia que os burocratas – profissionais da complicação e do enrolamento – tinham perdido a partida. O país parecis estar em vias de modernizar um sector que é fundamental ao correcto funcionamento da democracia. Já que a democracia, plena e avançada, é incompatível com burocracias esclerosadas e esclorosantes. A administração pública numa democracia plena tem de se reger por princípios de acesso, rápido e universal, do cidadão comum à informação de que necessita e de mecanismos, igualmente rápidos e eficientes, para a solução dos seus problemas concretos.

De pouco vale o recorte progressista da constituição se, na prática, o cidadão comum não puder usufruir de toda uma série de direitos que lá estão prescritos mas que esbarram com uma barreira intransponível de procedimentos administrativos inadequados e incompreensíveis para a generalidade das pessoas. Bem podem criar-se mais e mais mecanismos de defesa do cidadão e instituições que teoricamente velam pelos seus interesses, que nada adiantarão se não tiverem um suporte administrativo, claro e expedito.

Sobretudo se tudo isto acontecer em Portugal, país em que o grau de semi-analfabetismo é, ainda, extremamente significativo. Os aspectos formais do sistema jurídico português, por muito avançados que sejam, não servem de qualquer consolação a um cidadão que não lhe compreenda os complexos meandros e que não disponha de escolaridade e meios suficientes para os poder reivindicar.

A burocracia só serve para manter empregos desnecessários para retirar, através dos papeis, a possibilidade do cidadão comum aceder a um conjunto de direitos e prerrogativas que, teoricamente, lhe cabem, lhe cabem. O pleno usufruto dos direitos, liberdades e garantias do cidadão só pode ter lugar quando a administração for simples, rápida e eficiente. As intermináveis bichas de pessoas que, nas repartições públicas, mendigam uma informação e um atendimento minimamente desembaraçado continuam a ser um dos aspectos salientes da nossa vivência colectiva, passados quase 20 anos da abolição do antigo regime.

Mas tudo leva a crer que, mais uma vez, tudo não passou de, eventuais, boas intenções. A burocracia aí está, plena de força. As repartições públicas continuam a ser aquilo que sempre foram, um purgatório antecipado para quem tem como único pecado o ter nascido numa república das caraíbas, ainda que vestida de roupagens europeias.

É só ver os pobres dos velhotes a arrastarem-se de seca para meca e de meca para seca para resolverem questões elementares que nem sequer deviam existir.

O revivalismo burocrático é mesmo um facto. Tem um grande aliado – a crise. Cobrem-se com a mesma manta, como diria o povo.



P E D R O  D A M A S C E N O