sexta-feira, abril 30, 1993

A ERA DA JUGOSLÁVIA


FACE OCULTA

Fascismo não é um partido político mas um conceito de vida e uma atitude em relação ao homem, ao amor e ao trabalho
Wilhem Reich


A ERA DA JUGOSLÁVIA


Independentemente de qualquer tomada de posição sobre o que se passa ou tem passado na antiga Jugoslávia, já é lícito considerar que estamos perante uma situação que define uma época histórica.

Com efeito, a erupção tão intensa das mais variadas formas de xenofobismo, nacionalismo, racismo, fundamentalismo e crueldade humana atingiu proporções tais que vai marcar um lugar na história da evolução da humanidade.

Sobretudo tendo em atenção que tudo isto se passa no rescaldo do holocausto da 2ª guerra mundial, período que muita gente tentou imputar, em exclusivo, a Adolf Hitler. Mas cuja responsabilidade foi colectiva e de uma nação demenciada por valores que, agora, voltam a surgir na antiga Jugoslávia. Os ingredientes estão todos lá.

E se, hoje, não estamos a assistir em directo pela televisão a um novo holocausto é simplesmente porque as condicionantes exteriores são diferentes e porque a velocidade da divulgação das notícias, sobretudo das imagens, é vertiginosa. Mas, salvaguardadas as respectivas proporções, estamos a assistir, diariamente, a acontecimentos que têm, como pano de fundo, o mesmo total e repugnante desrespeito pela vida e pela dignidade humanas.

Aquilo que devia ser a preocupação central de uma comunidade civilizada – os valores da solidariedade, da justiça e da tolerância – é, precisamente, o que está esquecido no dia-a-dia de um (ou vários) país situado geograficamente na Europa! Europa que tanto prezamos como cadinho dos valores mais avançados da humanidade.

Não estamos a falar de um populoso e miserável país da Ásia ou de um massacrado e faminto país da África. Falamos da nossa preciosa Europa, de coisas que acontecem bem ali ao lado do antigo Império Austro-húngaro e da, agora, celebrada e civilizada Europa Central.

Quando tudo parecia caminhar bem melhor a nível mundial, com o término da guerra fria e do conflito leste-oeste e com o crescimento da consciência ambiental no meio de avanços tecnológicos e científicos notáveis, eis que somos confrontados com aquilo que efectivamente nunca deixamos de ser: seres mesquinhos e egoístas capazes das mais cegas atrocidades.

E essa é, provavelmente, a maior lição que teremos de tirar dos conflitos da Jugoslávia. Depois desta longa caminhada que tem sido a evolução da humanidade, temos que concluir que a qualidade da nossa estrutura de carácter e de comportamento deixa, ainda, muito a desejar. Seja na Bronx de Nova Iorque, em Pequim ou na Bósnia da Jugoslávia.

Todos os nossos avanços no campo do conhecimento e da cultura não têm sido suficientes para evitar que continuemos a ser «insignificantes bichos inteligentes com sujas necessidades fisiológicas» e com desempenhos muito deficientes a nível de comportamento e do carácter. E que ninguém se iluda, tentando arranjar bodes expiatórios para aquilo que hoje acontece na Bósnia, em Angola ou na Somália, que ontem aconteceu no terceiro reich e que amanhã poderá acontecer noutro lado qualquer.

As cruzadas, a inquisição, o nazismo/fascismo e outros mimos do nosso dever colectivo não estão, ainda, enterrados em termos de representarem épocas do comportamento humano que hoje já não seriam possíveis. Bem se engana quem pensa assim. Os sintomas estão por todo o lado: os elevados índices de criminalidade violenta, a retoma de conflitos armados por todo o lado, o ressurgimento em força dos skinheads, as teorias super-individualistas de sucesso económico por todos os meios, etc..

Simplesmente a Bósnia está junto aos centros nevrálgicos da nossa tão apregoada civilização ocidental e estamos na alvorada do século 21. O que torna tudo bem mais real e inquietante. Se fosse lá longe, num país de terceiro mundista qualquer ainda poderíamos continuar a agasalhar-nos no nosso casulo europeu.

Mas assim, não.

Por isso tudo talvez seja lícito falar de uma era da Jugoslávia.



P E D R O  D A M A S C E N O


 

quinta-feira, abril 15, 1993

«NÃO HÁ DINHEIRO» OU DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS?


FACE OCULTA

A lei é como teia de aranha: apanha as moscas mas é incapaz de apanhar os insectos grandes
Ana Carsis


«NÃO HÁ DINHEIRO» OU DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS?


Com uma frequência cada vez maior, ouvem-se, nas mais variadas instâncias, queixas de que o governo não paga porque «não há dinheiro». E de tal modo isso se banalizou que passou, quase, a ter estatuto de fundamentalismo legítimo e perfeitamente aceitável!

Os mais variados departamentos oficiais e respectivas repartições não pagam as dívidas que contraíram, não honram os compromissos que assumiram e, inclusive, não cumprem os objectivos para que foram criados e para que existem com o mesmo «sacrossanto» e universal pretexto.

Situação que começa a pôr em causa a estabilidade financeira de inúmeras empresas e a provocar uma ruptura grave a nível do investimento privado numa região aonde o tecido empresarial já é de si mesmo frágil e ainda muito dependente do Estado. E o que, ainda é pior, começa a criar grandes dificuldades a nível da prestação adequada de serviços em sectores cruciais como são a saúde e a educação.

É evidente que qualquer cidadão responsável e sensato, percebe que o Estado não está a cima de vicissitudes que lhe são estranhas como conjunturas internacionais ou nacionais difíceis, catástrofes naturais, etc.. Mas ninguém, por mais sensato e moderado que seja, pode perceber é como que é que o estado, vértice da sociedade democrática e seu espelho natural, assuma, com a maior lata, posturas perfeitamente caloteiras e, ainda por cima, o faça com total impunidade.

Mas para que servem, então, os tribunais de contas, os procuradores gerais da republica, os provedores de justiça e outros tantos ditos defensores e fiscais do estado de direito?

Porque afinal de contas os credores do estado, e falar em estado devia falar em todos nós, não têm outro remédio que não seja calar e esperar porque depender dos tribunais é a mesma coisa que aguardar um D. Sebastião trajado de beca. E protestar não adianta porque não há memória de caloteiro ter vergonha!

A última desculpa a utilizar pelo estado para não cumprir devia ser mesma esta. Porque se não tem dinheiro que o vá pedir emprestado como fazem todas as pessoas de bem que têm dívidas. Ninguém tem culpa, para além dos políticos, que o estado viva acima das suas possibilidades e não saiba planear e programar adequadamente.

O estado devia ser, exactamente, o primeiro a dar o exemplo em matéria de pagamentos, compromissos e planeamento. Pode ser conduzido, pelo menos teoricamente, pela nata dos cidadãos e por representar, face à constituição, não só a face da nação mas por ser responsável, em primeira linha, pelo cumprimento da lei.

Um estado de direito é, precisamente, um estado em que nenhum cidadão ou instituição está acima da lei. Um estado que se rege por normas universais e democraticamente assumidas.

Imprevistos acontecem, mas isso é verdade para toda a gente.

Quando a carne ou o leite não é pago aos agricultores, estes não podem empregar a desculpa (ainda que a verdadeira) que não tem dinheiro para pagar os seus compromissos, sejam eles bancários, fiscais ou privados. Se eu tiver uma série de grandes imprevistos pessoais ou familiares, de doenças ou de dívidas de outrem, o estado não vai esperar para eu ter dinheiro para pagar os impostos, a caixa de previdência e por aí fora.

Fica, portanto, que o estado é a única entidade que pode ferrar o calote à vontade, sem se preocupar com juros de mora ou responsabilidades penais. Basta-lhe só utilizar a fórmula mágica «não há dinheiro» e fica tudo explicado e nos conformes.

O cidadão comum, esse terá de se conformar com a dura realidade que tem que cumprir a lei.

Ou se trata de dois pesos e duas medidas?



P E D R O  D A M A S C E N O