sábado, maio 15, 1993

O Revivalismo Burocrático


FACE OCULTA

«A burocracia é a antítese da democracia»
Go Grimmond


O REVIVALISMO BUROCRÁTICO


Durante algum tempo, pouco, chegou a parecer que a modernização administrativa tinha, finalmente, chegado a Portugal. Houve mesmo um anúncio, profusamente passado na televisão, em que o martelar estridente dos carimbos era substituído pelo sussurro sibilante dos computadores. O homem da pala e das mangas-de-alpaca era, com pompa e circunstância, substituído por jovens – atraentes, simpáticos e eficientes. 

Chegou, mesmo, a haver alguns decretos governamentais que deram um toque de mudança como foi o caso da abolição do papel selado e da obrigatoriedade do reconhecimento notarial dos atestados médicos. Antecedidos de preâmbulos que criticavam os maus hábitos da administração pública e apontava para a «despenalização» burocrática do cidadão comum, soterrado sob uma avalanche de regulamentos.

Pretendia-se, até, que a vida passasse a ser muito facilitada a quem demandasse as mais variadas repartições públicas. O funcionário público era solicitado a prestar um atendimento correcto, cooperante e eficiente. Pretendia-se eliminar a ideia de que o cidadão é, à partida, um prevaricador e um empecilho e reforçar o conceito de que, bem pelo contrário, deve ser considerado uma pessoa de bem e merecer um tratamento adequado.

Parecia que os burocratas – profissionais da complicação e do enrolamento – tinham perdido a partida. O país parecis estar em vias de modernizar um sector que é fundamental ao correcto funcionamento da democracia. Já que a democracia, plena e avançada, é incompatível com burocracias esclerosadas e esclorosantes. A administração pública numa democracia plena tem de se reger por princípios de acesso, rápido e universal, do cidadão comum à informação de que necessita e de mecanismos, igualmente rápidos e eficientes, para a solução dos seus problemas concretos.

De pouco vale o recorte progressista da constituição se, na prática, o cidadão comum não puder usufruir de toda uma série de direitos que lá estão prescritos mas que esbarram com uma barreira intransponível de procedimentos administrativos inadequados e incompreensíveis para a generalidade das pessoas. Bem podem criar-se mais e mais mecanismos de defesa do cidadão e instituições que teoricamente velam pelos seus interesses, que nada adiantarão se não tiverem um suporte administrativo, claro e expedito.

Sobretudo se tudo isto acontecer em Portugal, país em que o grau de semi-analfabetismo é, ainda, extremamente significativo. Os aspectos formais do sistema jurídico português, por muito avançados que sejam, não servem de qualquer consolação a um cidadão que não lhe compreenda os complexos meandros e que não disponha de escolaridade e meios suficientes para os poder reivindicar.

A burocracia só serve para manter empregos desnecessários para retirar, através dos papeis, a possibilidade do cidadão comum aceder a um conjunto de direitos e prerrogativas que, teoricamente, lhe cabem, lhe cabem. O pleno usufruto dos direitos, liberdades e garantias do cidadão só pode ter lugar quando a administração for simples, rápida e eficiente. As intermináveis bichas de pessoas que, nas repartições públicas, mendigam uma informação e um atendimento minimamente desembaraçado continuam a ser um dos aspectos salientes da nossa vivência colectiva, passados quase 20 anos da abolição do antigo regime.

Mas tudo leva a crer que, mais uma vez, tudo não passou de, eventuais, boas intenções. A burocracia aí está, plena de força. As repartições públicas continuam a ser aquilo que sempre foram, um purgatório antecipado para quem tem como único pecado o ter nascido numa república das caraíbas, ainda que vestida de roupagens europeias.

É só ver os pobres dos velhotes a arrastarem-se de seca para meca e de meca para seca para resolverem questões elementares que nem sequer deviam existir.

O revivalismo burocrático é mesmo um facto. Tem um grande aliado – a crise. Cobrem-se com a mesma manta, como diria o povo.



P E D R O  D A M A S C E N O

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