sexta-feira, dezembro 15, 1995

A caridade da RTP/A

FACE OCULTA

A CARIDADE DA RTP/A

Não é segredo para ninguém que existem bolsas de pobreza nos Açores e que os fenómenos de maior marginalização social ocorrem em São Miguel. São conhecidas as histórias dos “São-miguéis” que vinham por aí a baixo e que, frequentemente, continuavam marginais nestas ilhas abaixo.

Com regularidade temos ocasião de ver nos telejornais episódicos de faca e alguidar que ocorrem em Rabo de Peixe e outras zonas semelhantes de São Miguel, aonde se constata um nível económico, social e cultural que dificilmente se encontrará no resto da Região. São Miguel que, desde sempre, nos habituou a gritantes contrastes sociais que vêm do tempo de antanho – do Clube Micaelense aos bairros de lata.

E a miséria humana, seja ela porque for (e tantas vezes existe sem razões objectivas), deve merecer a compaixão de todos nós. Porque essa é, sem dúvida, uma das virtudes mais importantes que um ser humano pode ter. E a compaixão – a capacidade de sentir o sofrimento dos outros – é condição prévia e indispensável para que a solidariedade possa existir.

Solidariedade que durante muitos anos, no tempo negro da ditadura, ficou praticamente entregue às instituições de beneficência e de solidariedade social à esmolinha que cada um de nós ia arranjando para tentar suprir, no imediato, faltas gritantes. Durante muitos anis Portugal teve um exército de pedintes – no verdadeiro sentido do termo – que não tinham outra hipótese do que estender a mão à caridade.

Com o virar da página do advento da democracia o país não passou, de repente, a rico mas as oportunidades sociais e de trabalho passaram a ser completamente diferentes e a segurança social – apesar de todas as suas limitações – veio trazer resposta a muitas situações desesperadas.

Depois veio a autonomia, a integração europeia, os incentivos comunitários e, brevemente segundo dizem, virá a moeda única. Portugal e os Açores saíam, finalmente, do getho em que o fascismo os tinha mantido.

Mas – e todos que querem ver sabiam – os problemas de pobreza e exclusão social não tinham sido erradicados nem de Portugal nem dos Açores. Problemas que, hoje, estão relacionados, também, com questões novas como é o caso da droga. Por isso se tem formado todo o tipo de comissões e o próprio ministério mudou de nome para solidariedade social.

Esperámos nós que a região estivesse, também, no caminho da solução para esse tipo de problemas. Solução institucional e tecnicamente enquadrada como é de esperar numa sociedade democrática e solidária.

Quando não é, portanto, o nosso espanto em vésperas deste Natal, vemos a televisão estatal vir pedir esmola pública em nome de um conjunto de imagens, deprimentes com que nos tem brindado todos os dias!

Sem questionar a melhor das intenções dos locutores que fazem os apelos do programa PARTILHA, o assunto é da maior gravidade e não pode de deixar de ficar qualquer cidadão lúcido de boca aberta.

No ano da graça de 1995 vem a RTP-Açores fazer peditório em nome de situações que não podem existir – a menos que haja graves falhas do sistema – numa sociedade moderna e integrada no espaço europeu! Passando de uma cajadada a um atestado de incompetência e incapacidade às autoridades regionais e de parvos aos telespectadores que são supostos começarem em depositarem dinheiro em contas bancárias para suprir – ninguém sabe como – situações que são da responsabilidade do estado que tem obrigação de assegurar a todos os cidadãos condições de vida condignas e igualdade de oportunidades. Para isso pagamos cada vez mais impostos.

Sem contestar a verdade dos casos apresentados e a urgência de uma solução (mas de fundo apenas conjuntural), é inadmissível que a saída encontrada seja fazer um peditório. É uma situação que desprestigia completamente os órgãos de governo próprio da região que não foram capazes, ao longo de 20 anos, de resolver questões sociais tão graves como as que passam no écran e a todos nós que andamos a votar em governos que fizeram monumentos à autonomia que custaram centenas de milhares de contos mas não souberam dar de comer a quem tem fome e dar tecto a quem está desabrigado.

O programa PARTILHA por todas essas razões é uma iniciativa digna de figurar numa televisão estatal de qualquer república das bananas. A obrigação da RTP/Açores, se estivesse a cumprir adequadamente o seu papel, teria sido a de denunciar publicamente essas situações num programa tipo magazine e chamar a atenção para quem de direito promovendo, inclusive, um debate público que viesse esclarecer as razões de situações tão anómalas e lamentáveis.

Ao ter embarcado no apelo ao sentimento das pessoas como o fez (faz lembrar o amputado que mostra a sai mazela para pedir esmola) a RTP/Açores veio conferir a uma questão que é política e de sistema uma dimensão exclusivamente patética.

Justiça e solidariedade social sim, caridade não.


P E D R O  DA M A S C E N O

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