sexta-feira, setembro 12, 2008

As voltas que o lixo dá!

As voltas que o lixo dá!


Claro que os aterros sanitários são imprescindíveis e incontornáveis e a crescente quantidade de lixo impõe a sua separação e tratamento adequado nomeadamente a reciclagem.

As poucas lixeiras tradicionais que ainda existem pela ilha vão desaparecer, em breve. É a vida. Assim o impõem os novos desafios da preservação do ambiente e as quantidades astronómicas de lixo que os próprios agregados familiares geram.

Mas, perdoem-me a nostalgia, o desaparecimento dessas lixeiras tradicionais vão deixar triste um público próprio. Um público que vai desde os sucateiros aos angariadores de objectos para uso ou divertimento próprio mas, sobretudo, a pessoas que no lixo procuram e encontram verdadeiras preciosidades.

Preciosidades que tanto podem ser um velho baú da América cheio de autocolantes como uma imagem sacra ou um velho brinquedo de madeira ou porcelana. Como podem ser pratos antigos rachados ou cadeiras desengonçadas ou objectos pessoais como cartas ou roupas.

As lixeiras tradicionais sempre foram um manancial para quem nelas consegue (ou conseguia) descortinar vidas através dos despojos que lá vão/iam parar. Verdadeiros repositórios de vidas mudadas ou, simplesmente, acabadas. Sítios fascinantes para quem para tal tem sensibilidade e paciência.

Porque se a vida dá muitas voltas, o lixo acompanha-as e ilustra – como verdadeiros epitáfios – essas cambalhotas e reviravoltas. Permitindo trilhos e pistas que quase nos levam a sentir as vidas que já lá vão.

A prima Gestrudes foi criada com uma gota de água numa couve. Filha única e dotada para as artes nunca logrou, contudo, casar. Idos os pais e longe os pouco parentes directos lá foi fazendo o resto da sua vida, ponteada de solidão e bastante amargura.

Da menina de seus pais passou a velha e doente vivendo, sempre, na mesma casa modesta em que fora criada e aonde convivia com os objectos que, no fundo, eram também a história e o testemunho da sua vida.

E morreu, como todos nós vamos ter que fazer. Depois de uma longa agonia que não lhe permitiu usufruir a “sorte grande” que o terramoto lhe trouxera. Na forma de uma casa novinha em folha que, embora no mesmo sítio e do mesmo tamanho, lhe poderia ter proporcionado maior conforto.

Nem nisso a prima teve sorte. Ou melhor nem para gozar a sorte teve sorte. Decapitada, há muito anos, a árvore que lhe dava sombra, aí ficou, triste e solitária como a dona-que-não-chegou-a-ser, a casa que foi cenário de muito talento e sabedoria.

E da casa triste resultou também um trilho subtil na lixeira. Primeiro uns camelos de madeira de oliveira da Terra Santa. Depois um livro com marcas e cartas ainda com notas pessoais. E lá, bem mais longe, jaz o passaporte já caducado da prima. Ainda com os caracóis bem presentes na fotografia a cores.

Um trilho subtil mas que ainda assim deixou, aberta ao público, um pouco da exposição de uma vida. Que, como tantas outras que lá também foram parar, teve de tudo mas acabou em nada.

As voltas que o lixo dá! Ou dava?

P E D R O D A M A S C E N O

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