segunda-feira, novembro 30, 1992

A BELICA DA TELEVISÃO


FACE OCULTA


                                             A BELICA DA TELEVISÃO         

   

A inusitada, repetida e desapropositada mostra de uma anónima belica lusitana com que a nossa única televisão nos «brindou» ultimamente, bem justifica estas belicosas linhas!

 Nada faltou, desde os primeiros planos aos desenhos explicativos. Belica sozinha, depois bélica já cozida ao dono e finalmente belica meia arrancada. Tudo acompanhado de sumarentos detalhes clínicos e cirúrgicos.

Nada nos move, obviamente, contras a belicas de uma forma geral e certamente nada contra esta em particular. Como nada nos move contra a liberdade de expressão, nos seus termos mais latos.

Apenas nos surpreende que uma televisão estatal e, por conseguinte, um serviço público, se preste ao mais insólito e sórdido sensacionalismo enveredando por uma completa e inconsciente falta de decoro e, ainda por cima, num dos tempos mais nobres - o telejornal.

 A história conta-se em dois tempos. Um doente mental mutilou, em virtude da sua doença, o pénis. Situação que não sendo de todos os dias acontece com alguma frequência em certos tipos de perturbações mentais.

Dados os avanços cirúrgicos que, felizmente, se registam neste país, uma equipa médica conseguiu suturar o órgão amputado ao doente, com aparente êxito. Dias mais tarde o doente tentou novamente a mutilação, desta vez por arrancamento. O que terá posto em risco o sucesso da intervenção cirúrgica.

Questiona-se que esta história, embora pouco comum, devesse ter honras de aparecer duas vezes no telejornal. Mas concede-se que tendo em conta que implicou um acto médico complexo, tenha constituído matéria aceitável para aquele programa. Mas apenas por tal, evitando os pormenores escabrosos como a belica na ambulância, no tabuleiro, etc..

O resto é, liminarmente, lamentável.

Em primeiro lugar porque constitui uma inaceitável quebra da privacidade de um cidadão que teve a sua intimidade exposta de forma perfeitamente explícita com a agravante de se tratar de um doente do foro psiquiátrico e consequentemente fortemente incapacitado até para protestar em tribunal o aproveitamento que foi feito da sua doença. Em segundo lugar porque veio explorar o bizarro e o insólito sem terem em linha de conta o eventual espectador, fosse ele maior ou menor, sensível ou não. Sem esquecer o papel formativo que a RTP / A, por única e omnipresente, tem.

Uma perfeita pirataria ao nível do «jornal do sexo» ou «jornal do Incrível». Ontem foi um pénis, amanhã pode ser uma vagina ou uns testículos!

Ficou-nos a sensação de se tratar de um bom exemplo da subcultura ou pseudocultura que, cada vez mais, prolifera e que se distingue pela abordagem dos temas de uma forma superficial, sensacionalista e inconsequente. Há assuntos que pela sua complexidade e importância devem ser abordados e discutidos em sede própria e com a necessária profundidade. Se assim não for arriscamo-nos a produzir informação «enlatada» e a estimular uma banalização de temas que deveriam ser tratados com sobriedade e seriedade.

A cultura é fundamental para a qualidade de vida das pessoas na medida em que lhes proporciona melhor entendimento de si próprias e promove o culto pelo belo e pela inteligência.

Mas jamais deverá deixar-se que cultura involua para subcultura, um subproduto caracterizado por «conhecimentos» cozinhados em «supermercados de informação» e engolidos de forma crítica e consumista. No fundo falar de tudo e de todos de maneira arrogante, ignorantes e irresponsável.

Não vamos ser conservadores nem puritanos, mas vamos ser sensatos. O sexo deixou, e muito bem, de ser um tabu. Deve fazer parte das nossas vidas como qualquer outra função do corpo humano e como tal deve ser encarado. Mas com respeito e equilíbrio.

Interessante seria imaginar o que pensaria o Dr. Sigmund Freud se tivesse tido acesso àquelas duas peças televisivas? Iria simplesmente rir-se ou iria mesmo levar o assunto a sério e propor, à Administração da RTP, umas sessões de psicanálise ao responsável pelo programa?

Abaixo a belica da televisão.



P E D R O  D A M A S C E N O


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