FACE
OCULTA
A ODISSEIA DAS VACAS
As belezas naturais e a ruralidade
do Pico são inquestionáveis e constituem, mesmo, dois pilares fundamentais para
o seu desenvolvimento que deverá ser equacionado nesses termos e não segundo um
modelo de características urbanas. A ruralidade da ilha poderá ser uma
autêntica galinha de ovos de ouro se for devidamente aproveitada e
potencializada.
A última coisa que quem nos visita –
e tem olhos para ver – poderia desejar é a perca dessa ruralidade e o ganho de
um “desenvolvimento” de características suburbanas, copiado a partir de modelos
que nada têm a ver com a nossa realidade.
A ilha do Pico é um espaço
eminentemente rural e é nessa matriz que qualquer desenvolvimento deve ter as
suas raízes. Um desenvolvimento que, cada vez mais, acentue o carácter único de
uma ilha que é um dos poucos casos de beleza, tranquilidade e segurança que
restam no espaço europeu. Corromper isso é não ter percebido as linhas de força
que devem motivar o crescimento económico de uma ilha que, mercê do seu atraso
anterior, tem hoje potencialidades únicas dentro do próprio arquipélago.
Potencialidades únicas que derivam da aprendizagem que pode ser fita de erros
que se fizeram um pouco por todo o lado e da sensibilidade para as questões do
ambiente e da natureza que, nível europeu, tem vindo a ganhar,
ininterruptamente, adeptos.
O grande desafio que se coloca ao
Pico é aproveitar os déficites do passado e os conhecimentos do presente para
desenvolver de uma forma original.
Mas se a ruralidade é um bem
precioso com que devemos contar para o nosso desenvolvimento não deve, em
circunstância alguma, ser confundida com parolice ou primarismo. Uma coisa é
ser rural no que isso significa de ligação à natureza, respeito pela terra e
empatia com as forças naturais outra, completamente diferente, é associar a
ideia de rural a atraso e obliteração das regras de conveniência que devem
existir em qualquer sociedade civilizada.
Rural não implica, necessariamente,
falta de civismo do mesmo modo que urbano não significa, também
necessariamente, civilização. Pode ser exactamente o contrário como está
provado um pouco por todo o lado. Qual será mais civilizado: a Amadora ou
Sacavém ou uma das muitas aldeias rurais do Tirol austríaco?
Mas rural pode também significar
primitivismo e falta de sentido comunitário e de respeito pelas regras da
convivência civilizada e democrática. E, infelizmente, o nosso Pico ainda tem
muito disso. Os exemplos abundam e vão desde o lixo que se deita de qualquer
maneira em qualquer lado aos estacionamentos que se fazem por todo o lado e que
põem em risco a segurança dos cidadãos, numa total falta de sensibilidade pela
existência de regras que têm como objectivo fundamental a defesa da vida e da
fazenda desses mesmos cidadãos. Cada um por si e Deus por todos parece ter-se
tornado um dos princípios da nossa vida quotidiana.
Perderam-se alguns princípios que
sempre caracterizaram a vida no campo e que tinham a ver com um elevado sentido
de entreajuda comunitária e com sãos hábitos de cortesia que ainda se detectam
nos mais velhos. Em sua substituição têm-se vindo instalar, de forma
preocupante, uma “cultura” híbrida e que é uma mistura de provincianismo
arrogante e novoriquismo parolo.
E é neste caldo que surge a temática
das vacas nas estradas do Pico, nomeadamente na transversal e longitudinal.
Inicialmente havia uma ou outra situação de perigo que, frequentemente,
decorria de situações a que os pastores eram alheios. Hoje o perigo e caos
ocuparam as estradas da ilha num total desrespeito pela lei, pela segurança e
mesmo pelas mais elementares regras de cortesia.
As estradas são das vacas e os
veículos são objectos, mais ou menos estranhos, que também por lá circulam! Em
qualquer curva, debaixo do nevoeiro mais intenso lá estão elas invariavelmente
ocupando todas as faixas de rodagem perante a total passividade dos seus
pastores que chegam ao cúmulo de se sentarem, comodamente ao volante dos
respectivos carros como se nada tivessem com o assunto!
O Pico é uma ilha rural e com uma
pecuária forte, e ainda bem. Mas isso não tem que significar a selva e a total
e completa falta de respeito por tudo e por todos perante a passividade dos
responsáveis quer governamentais quer policiais. Desde quando se pode em
Portugal ocupar todas as faixas de rodagem de estradas correntes com vacas,
seja em curvas, seja debaixo de nevoeiro, sem qualquer tipo de limitações?
Que vivam as vacas que nos merecem
todo o respeito e que progrida a actividade económica de que são o suporte
fundamental, mas que isso não ponha constantemente em causa a segurança a
liberdade de todos os outros cidadãos que também têm direitos.
A odisseia das vacas nas estradas do
Pico é por isso mesmo um bom exemplo de ruralidade primitiva e egoísta que se
deve combater e fazer substituir por uma ruralidade civilizada em que se
equacionem as necessidades e os problemas do sector pecuário com as exigências
de uma sociedade civilizada.
Essa condição é perfeitamente
possível mas para isso é indispensável que os governantes governem e os policiais
policiem. Apenas uma escandalosa omissão de todos os responsáveis tem permitido
uma situação que atesta a nossa incapacidade colectiva para desenvolver sem
perversões que a ninguém servem e que apenas tornam o nosso quotidiano mais
difícil.
P E D R O
D A M A S C E N O
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