FACE
OCULTA
«O interesse pela doença e pela morte
é sempre apenas uma outra expressão do interesse pela vida»
T. MANN
UM CASO EXEMPLAR
Ainda está quase quente o corpo do
jovem Victor que perdeu a vida num Centro de Saúde do Pico, aonde durante mais
de duas horas permaneceu numa maca esperando, debalde, por um helicóptero que
nunca chegou e usufruindo, apenas, dos rudimentares cuidados que é possível
ministrar naquela unidade de saúde (de resto como nas outras).
Durante mais de duas preciosas horas foram feitas várias diligências para efectuar
a evacuação aérea mas que embateram em dificuldades de carácter burocrático e
funcional. Durante mais de duas horas não foi possível criar as condições
entendidas necessárias para que o helicóptero viesse. Quando finalmente essas
condições foram criadas já era tarde.
Possivelmente ninguém poderá
afirmar, de forma categórica, que a jovem vida teria sido poupada se tivesse
ocorrido uma transferência expedita para um centro hospitalar com as
necessárias condições para fazer face a uma emergência grave. Mas o contrário
também é verdadeiro: ninguém poderá, de forma categórica, afirmar que o doente
tivesse sido assistido com os necessários meios – e de forma urgente como o
caso exigia – mesmo assim não teria sobrevivido.
Duas horas podem ser uma eternidade
em termos de uma emergência médica. Mesmo dois minutos poderão ser a fronteira
entre a vida e morte.
O sinistrado tinha sido uma situação
muito grave, tão grave que lhe provocou a morte. Pergunta-se: como pode esse
doente ter permanecido tanto tempo numa unidade de saúde que apenas dispõe de
rudimentares meios de diagnóstico e tratamento, uma unidade sem capacidade
técnica para fazer face a um traumatismo craniano grave ou uma hemorragia
interna, situações extremamente comuns em acidentes de viação?
Não é do conhecimento público o
resultado da autópsia (efectuada de forma e em condições deploráveis) nem se
pretende discutir questões que são eminentemente técnicas. Pretende-se sim dissecar
as fragilidades do sistema de saúde da ilha sobretudo quando confrontado com
uma emergência grave.
O que é tanto mais actual quanto
ainda recentemente várias forças políticas tiveram que bater o pé para que,
afinal, se fizesse no Pico um, ainda que modesto, bloco cirúrgico. Como a
querer dizer que não adianta ter um
centro de saúde apenas de paredes novas. É essencial que se criem na ilha
as condições mínimas para fazer face a situações que podem ocorrer a qualquer
momento. E que, para além disso, se organize um sistema de evacuação com graus
de prioridade bem definidos e que não dependa do parecer de quem deveria estar
localizado e não aparece quando é preciso.
Mais do que os aparatosos exercícios
de evacuação pra televisão filmar e político fazer discurso, interessa que
exista um sistema de evacuação que realmente funcione e que não emperre porque
falta um papel azul com pintinhas cor-de-rosa ou porque um doutor ou militar
acordou com os pés de fora.
O Pico continua a viver o drama de
não ter uma unidade de saúde dotada dos meios indispensáveis para fazer face a
situações realmente graves e a não ter um serviço de urgência dotado dos meios
técnicos e humanos indispensáveis. Continua apenas a ter três “capelinhas” que
continuam a dispor somente de um médico de chamada (?) que, em regra, pouco ou
nada pode fazer – mesmo quando chega a tempo – por falta de quase tudo. Esse
mesmo Pico aonde já não é, sequer, possível ter um parto perfeitamente normal!
O dinheiro que hoje se gasta no Pico
com a saúde – se fosse devidamente gasto – seria sem dúvida suficiente para se
obterem graus de eficácia e rentabilidade extraordinariamente maiores. Como se
percebe que uma ilha não possa ter uma unidade de saúde minimamente
dimensionada e diferenciada mas que possa ter centros de saúde a abarrotar de
pessoal, três gabinetes de radiologia, três laboratórios de análises, três
parteiras que não fazem partos, etc., etc.,?!
Independentemente da causa de morte
que constar na certidão de óbito do malogrado acidentado poucas dúvidas
restarão a quem é sensato que não foi feito tudo o que deveria e poderia ter
sido feito. E que isso ocorreu por culpa de um sistema que não está minimamente
organizado para fazer face a situações de grande emergência. Não há, portanto,
que procurar, agora bode expiatórios que serão possivelmente meros peões de
brega para uma ocorrência que, infelizmente, já não tem remédio. Há sim que
meditar no problema de fundo que é grave, muito grave e que toda a gente parece
ignorar.
O Victor deixou-nos de uma forma
súbita, trágica e inglória. Todos os que ficamos nesta ilha de exasperante
mansidão somos potenciais victores.
Todos.
P
E D R O D A M A S C E N O
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