quinta-feira, setembro 15, 1994

UM CASO EXEMPLAR


FACE OCULTA

«O interesse pela doença e pela morte é sempre apenas uma outra expressão do interesse pela vida»
T. MANN

UM CASO EXEMPLAR


Ainda está quase quente o corpo do jovem Victor que perdeu a vida num Centro de Saúde do Pico, aonde durante mais de duas horas permaneceu numa maca esperando, debalde, por um helicóptero que nunca chegou e usufruindo, apenas, dos rudimentares cuidados que é possível ministrar naquela unidade de saúde (de resto como nas outras).

Durante mais de duas preciosas horas foram feitas várias diligências para efectuar a evacuação aérea mas que embateram em dificuldades de carácter burocrático e funcional. Durante mais de duas horas não foi possível criar as condições entendidas necessárias para que o helicóptero viesse. Quando finalmente essas condições foram criadas já era tarde.

Possivelmente ninguém poderá afirmar, de forma categórica, que a jovem vida teria sido poupada se tivesse ocorrido uma transferência expedita para um centro hospitalar com as necessárias condições para fazer face a uma emergência grave. Mas o contrário também é verdadeiro: ninguém poderá, de forma categórica, afirmar que o doente tivesse sido assistido com os necessários meios – e de forma urgente como o caso exigia – mesmo assim não teria sobrevivido.

Duas horas podem ser uma eternidade em termos de uma emergência médica. Mesmo dois minutos poderão ser a fronteira entre a vida e morte.

O sinistrado tinha sido uma situação muito grave, tão grave que lhe provocou a morte. Pergunta-se: como pode esse doente ter permanecido tanto tempo numa unidade de saúde que apenas dispõe de rudimentares meios de diagnóstico e tratamento, uma unidade sem capacidade técnica para fazer face a um traumatismo craniano grave ou uma hemorragia interna, situações extremamente comuns em acidentes de viação?

Não é do conhecimento público o resultado da autópsia (efectuada de forma e em condições deploráveis) nem se pretende discutir questões que são eminentemente técnicas. Pretende-se sim dissecar as fragilidades do sistema de saúde da ilha sobretudo quando confrontado com uma emergência grave.

O que é tanto mais actual quanto ainda recentemente várias forças políticas tiveram que bater o pé para que, afinal, se fizesse no Pico um, ainda que modesto, bloco cirúrgico. Como a querer dizer que não adianta ter um centro de saúde apenas de paredes novas. É essencial que se criem na ilha as condições mínimas para fazer face a situações que podem ocorrer a qualquer momento. E que, para além disso, se organize um sistema de evacuação com graus de prioridade bem definidos e que não dependa do parecer de quem deveria estar localizado e não aparece quando é preciso.

Mais do que os aparatosos exercícios de evacuação pra televisão filmar e político fazer discurso, interessa que exista um sistema de evacuação que realmente funcione e que não emperre porque falta um papel azul com pintinhas cor-de-rosa ou porque um doutor ou militar acordou com os pés de fora.

O Pico continua a viver o drama de não ter uma unidade de saúde dotada dos meios indispensáveis para fazer face a situações realmente graves e a não ter um serviço de urgência dotado dos meios técnicos e humanos indispensáveis. Continua apenas a ter três “capelinhas” que continuam a dispor somente de um médico de chamada (?) que, em regra, pouco ou nada pode fazer – mesmo quando chega a tempo – por falta de quase tudo. Esse mesmo Pico aonde já não é, sequer, possível ter um parto perfeitamente normal!

O dinheiro que hoje se gasta no Pico com a saúde – se fosse devidamente gasto – seria sem dúvida suficiente para se obterem graus de eficácia e rentabilidade extraordinariamente maiores. Como se percebe que uma ilha não possa ter uma unidade de saúde minimamente dimensionada e diferenciada mas que possa ter centros de saúde a abarrotar de pessoal, três gabinetes de radiologia, três laboratórios de análises, três parteiras que não fazem partos, etc., etc.,?!

Independentemente da causa de morte que constar na certidão de óbito do malogrado acidentado poucas dúvidas restarão a quem é sensato que não foi feito tudo o que deveria e poderia ter sido feito. E que isso ocorreu por culpa de um sistema que não está minimamente organizado para fazer face a situações de grande emergência. Não há, portanto, que procurar, agora bode expiatórios que serão possivelmente meros peões de brega para uma ocorrência que, infelizmente, já não tem remédio. Há sim que meditar no problema de fundo que é grave, muito grave e que toda a gente parece ignorar.

O Victor deixou-nos de uma forma súbita, trágica e inglória. Todos os que ficamos nesta ilha de exasperante mansidão somos potenciais victores.

Todos.


P E D R O  D A M A S C E N O

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