sexta-feira, outubro 14, 1994

OS CAPADORES DA ILHA


FACE OCULTA

«Os capadores da Ilha estão aí de faca afiada»
Manuel Serpa


OS CAPADORES DA ILHA



Muito desiludidos quase todos nós andamos com os políticos, quer da situação quer da oposição. Por isso é sempre bem-vinda uma pedrada no charco desta nossa política regional e ilhoa: apática, morna e viscosa.

E foi por isso mesmo que o deputado picaroto Manuel Serpa fez na sua última intervenção no período de antes da ordem do dia na Assembleia Legislativa Regional. Despindo as peias partidárias e eliminando as palavras poéticas delicodoces do discurso de agradar-ao-ouvido-mas-não-arranhar-ninguém leu em texto vigoroso e directo – de arrepiar.

Sem perder a elegância chamou os bois pelos seus nomes e pronunciou palavras viris como o basalto rude dos nossos mistérios e sólidas como natureza altaneira e exuberante.

Um discurso que todos os picoenses, aqui ou por esse mundo fora, deveriam ler e reter. Um discurso que se preocupou com causas profundas do nosso presente baço e com as razões da diáspora que nos continua a sangrar incessantemente.

Porque o que aí se diz tem muito a ver com a nossa ancestral castração colectiva e muito pouco habitual choradinho das reivindicações que passamos a vida a fazer com a mesma atitude do pobre, de prato de alumínio estendido à caridade pública, ou do deficiente, que exibe publicamente o seu aleijão, esperando almejada esmola.

E nada poderá, efectivamente, mudar enquanto os picoenses não perceberem que o que tem estado e está em marcha é um processo de castração, insidioso e constante. E não forem capazes de perder a mentalidade de parente pobre, venerador e obrigado.

O Pico é hoje uma ilha de grande valia no contexto dos Açores do mesmo modo que estes são uma grande valia no contexto europeu.

Porque o que nós temos para oferecer – tranquilidade, segurança, ruralidade autêntica, natureza quase intacta – são coisas que escasseiam por todo o lado num mundo que, inexoravelmente, caminha para a exaltação dos seus recursos naturais e o mesmo é dizer se afasta, irreversivelmente, do habitat natural para que estamos adaptados e que é condição imprescindível para o nosso equilíbrio físico e psíquico e, por isso, para nossa saúde e felicidade.

E se hoje temos apenas 15.000 habitantes – argumento tantas vezes utilizado para nos negarem o direito à saúde, à educação e à cultura para não falar do resto (aeroporto, protecção marítima, estradas, etc.) – isso deve-se não à falta de condições da Ilha para gerar riqueza e para cá manter os seus filhos mas aos déficites de desenvolvimento mantidos a partir de fora por estrangulamentos propositadamente mantidos.

Só assim se podem explicar as sucessivas omissões e desastradas decisões que têm abatido sobre a ilha. Como já noutra crónica se disse o Pico tem tudo e não tem nada! Tem três centros de saúde e um sistema de saúde que não funciona (que o diga que já precisou mesmo para o acontecimento mais normal da vida de uma pessoas que é o nascimento do filho), uma pista amputada numa zona em que o crescimento poderia ser quase indiscriminado, dois portos insuficientes com um terminal de passageiros vergonhoso, uma rede de estradas que desafia as do Koweit a seguir à guerra do Golfo, um cardeal camerlengo transformado em escola secundária!

Por muita que seja a incompetência não dá para acreditar que tudo seja apenas coincidência. Os capadores da ilha – de facto – existem, são muitos e andam de faca em riste. Não se trata de um delírio persecutório e barrista de velhos baleeiros em andropausa ou de funcionários públicos desocupados em tertúlias de fim de tarde enevoadas. O que se passa é o drama da ilha que foi decretada para se medida apertada ou da ilha que é medida pelo balaio em vez de rasoira, como também disse o deputado picaroto.

Mas quem são, afinal os capadores da ilha? São muitos, têm muitas caras e existem a todos os níveis: governo, partidos, associações de vária ordem, organismos oficiais, etc. todos se conhecem. E, atenção, há capadores da ilha em todos os partidos para que conste e não se tente desvalorizar esta magna questão com subterfúgios.

O Pico tem, pese tudo e todos, pernas para andar e isso assusta muito boa gente cuja sobrevivência passa pela manutenção do actual estado das coisa. Um Pico finalmente transformado m Ilha Maior que não seja apenas de poetas e cronistas faz medo a quem lhe chamou hipocritamente ilha do futuro.

E isso fez um amuleto para exorcizar qualquer veleidade de desenvolvimento da ilha do verdelho e dos baleeiros que, assim, continuaria para sempre uma coutada etnográfica.

Alguém afirmou que os próprios déficites de desenvolvimento podem constituir-se em grandes oportunidades de negócio. O Pico está nestas circunstâncias: tem grandes oportunidades, apenas é preciso que nós acreditemos em nós próprios e saibamos identificar e combater de forma viril, que não apenas nas palavras, quem nos persegue de faca afiada.

Mas que ninguém se iluda: “Os capadores da Ilha estão aí de faca afiada.”


P E D R O  D A M A S C E N O


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