quarta-feira, novembro 30, 1994

O TRAJE E O MODO


FACE OCULTA


«Um macaco, por muito bem vestido que esteja, não passa de um macaco bem vestido»
John Smith


O TRAJE E O MODO


O 25 de Abril trouxe para o Pico, como para o resto do país, uma indiscutível arrancada para a modernidade e para o desenvolvimento.

Acordando de uma modorra centenária, a ilha começou a conhecer outros horizontes, evoluindo de uma situação em que quase todos não tinham nada para se tornar numa comunidade que já experimenta apreciáveis níveis de conforto e bem-estar.

Com o aumento exponencial de empregos na função pública e na banca e com a melhoria substancial em sectores da população. Recursos que inicialmente se reflectiram em bens essenciais como casas de banho e melhores condições de habitualidade.

Contudo, após uma fase inicial de euforia democrática e equalitária, começou a surgir uma nova classe social marcada por uma capacidade financeira apreciável para o meio e que encontrou numa euforia consumista já mais preocupada com as aparências e o status.
Evolução que naturalmente não foi acompanhada por correspondente melhoria escolar, civilizacional e cultural.

O carro, o vestuário, a parabólica, etc., vieram, cada vez mais, a impor-se como sinais externos desse novo status que passou a depender, por isso mesmo, essencialmente desse tipo de bens por se afirmar. As aparências passaram a constituir, de forma crescente, o fulcro das preocupações sociais em detrimento da procura de valores existenciais mais virados para o desenvolvimento pessoal e do espírito.

Circunstancia que foi deixando a tradicional e sã cortesia dos picoenses, progressivamente, confinada às pessoas de mais idade e sobretudo das freguesias. As poucas iniciativas comunitárias, quer de carácter cultural (teatros, filarmónicas, etc.) quer mesmo de carácter religioso (grupos paroquiais p.e.), decresceram de maneira extremamente preocupante dando lugar à cultura da pastilha elástica mastigada de boca aberta e ao autismo social.

Coisas, tão simples e elementares, como bom dia ou boa tarde tendem a desaparecer do nosso quotidiano, ironicamente, em pequenas comunidades como o Pico em que praticamente toda a gente se conhece, perdem-se os hábitos de convívio personalizado que há muito, infelizmente, se perderam nas grandes cidades. Situação que não reflecte evolução ou desenvolvimento mas simplesmente retrocesso.

Sem se questionar, bem antes pelo contrário, a importância do desenvolvimento e da correlativa melhoria das condições de vida das pessoas torna-se, contudo, imprescindível defender que esses avanços sejam acompanhados por um correspondente amadurecimento cívico e cultural. Combate que terá que ser, em primeiro plano, protagonizado pelas escolas que não se podem limitar a ser apenas sítios aonde se transmitem, melhor ou pior, os currículos escolares oficiais.

As escolas, para cumprirem integralmente o seu papel, terão pois que suprir os déficites educacionais e culturais dos alunos. Não basta ter apenas um nono ano ou um décimo primeiro nas escolas do Pico. É preciso que a este nível educativo corresponda um correlativo conjunto de regras cívicas e de cortesia, de nível cultural e, mesmo, de higiene pessoal.

Bem dizia o povo que o “hábito não faz o monge” mas talvez nunca tanto como hoje esse ditado singelo é ignorado. E misturam-se os conceitos de tal modo que qualquer macaco bem vestido passou a poder dispor de estatuto social enquanto que um ser humano mal vestido passou a poder ser tomado por macaco!

É bom que haja asseio pessoal e estética no vestir porque embora o hábito não faça o monge é sempre bom que o monge use o hábito.

Que viva o traje mas que não se esqueça o modo.


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terça-feira, novembro 15, 1994

OS CAPADORES DA ILHA (II)


FACE OCULTA


OS CAPADORES DA ILHA (II)
OU
A MÃE DE TODAS AS CAPADELAS


Infelizmente os últimos acontecimentos confirmaram os nossos piores temores e vêm, mais uma vez, dar o nome a esta crónica.

Como se já não nos bastasse todos os nossos déficites de desenvolvimento são, agora, as próprias bases, prévias e indispensáveis, para que ele, finalmente, arranque que nos são negadas. Como se fosse possível construir qualquer edifício, minimamente estável, sem fundações.

Mas o que mais magoa e desanima é a revogação, à última hora, de compromissos formal e publicamente assumidos. Ontem foi o bloco cirúrgico do Centro de Saúde de São Roque, hoje é o alargamento da pista do Pico. E se há estrutura cujo devido e adequado dimensionamento merece consenso dos picoenses - políticos da situação e oposição, deputados, autarcas, empresários e público geral – é exactamente o alargamento da pista.

E, contradição das contradições, é precisamente essa estrutura que é retirada do Plano de Orçamento para 1995 do Governo Regional dos Açores e, o mesmo é dizer, para muitos anos. Por que ninguém se iluda: se esse objectivo for, agora conseguido não vamos ter alargamento de pista por muitos anos. E porquê? Porque essa opção não é inocente muito menos de caracter económico e transitório e vejamos porquê.

Em primeiro lugar porque na elaboração de qualquer plano a primeira coisa a ter em linha de conta é o elenco das prioridades. E não há dúvida que no topo desse, está, para o Pico, o alargamento da pista. E isto mesmo tem sido por toda a gente e nomeadamente pelos autarcas que, de forma perfeitamente unânime, o têm afirmado repetidamente em público.

Em segundo lugar terá de ter em conta o montante dessas prioridades e o alargamento da pista – no montante da ordem dos 300 mil contos – é perfeitamente comportável mesmo para um orçamento restritivo. Sobretudo se tivermos em linha de conta que a Ilha do Faial – como menos população, um terlo do tamanho e com um conjunto de estruturas muito mais alargado e valioso – vai receber neste orçamento uma verba superior à do Pico que se aproxima do valor que seria necessário para alagar a nossa pista!!...

Em último lugar, tratando-se de um orçamento de uma região insular, terá de ter em conta uma filosofia que venha diminuir e esbater as assimetrias regionais. Preocupação que fundamente o próprio regime autonómicos. Para que nos serve uma autonomia que em vez de nos defender de um poder central discriminatório e preconceituoso venha, ela própria, criar e consolidar assimetrias?

O alargamento da pista do Pico é hoje a prioridade número um para o desenvolvimento desta ilha. Doa a que doer e cause os engulhos que causar.

O canal Pico-Faial, pese embora a sua grande importância, não pode nem deve substituir um aeroporto adequado como uma pista bem dimensionada. Disso dependerá a curto, médio e longo prazo do desenvolvimento da Ilha. Sobretudo se tivermos em atenção que se trata de um investimento extremamente modesto em virtude dos enormes benefícios que vai, indiscutivelmente trazer.

Embora não podendo comparar as duas situações não deixa de ser interessante reflectir sobre os investimentos faraónicos que a Ilha da Madeira tem vindo a fazer e vai continuar a fazer para ter um aeroporto adequado às suas necessidades. Porque os madeirenses já perceberam que, para eles, se trata de uma estrutura imprescindível para o seu desenvolvimento, mesmo que tenham de construir pilares para fazer uma pista sobre o mar! Verdade que é universal dado que nenhuma ilha poderá aspirar, hoje em dia, a um desenvolvimento sustentado e consequente sem um aeroporto satisfatório.

Enquanto para a Pista do Pico se reivindica somente uns reduzidos metros de asfaltagem mas que virão a fazer diferença.

É ridículo questionar em 1995 e em sede de orçamento regional essa necessidade vital da ilha. De modo que a explicação só pode ser encontrada nos capadores da ilha que andam por aí de lâmina em riste e não desistem. Não há outra lógica que possa explicar semelhante decisão.

Cabe a palavra, agora, aos políticos nomeadamente aos deputados e presidentes de câmara da Ilha do Pico. Só eles poderão fazer inflectir o sentido da decisão tomada o que não deixará, por isso mesmo, de ser um teste decisivo sobretudo para os actuais presidentes de câmara que têm procurado pautar a sua actuação por uma perspectiva de ilha, pondo de lado as capelinha, mas que agora enfrentam um desafio realmente sério até porque terão que, de algum modo, de pôr em causa o governo que apoiam.

Mas, desde já, uma coisa é certa: a decisão de excluir do plano de 95 o alargamento da pista do Pico é a mãe de todas as capadelas a que esta ilha tem estado sujeita.


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sexta-feira, outubro 14, 1994

OS CAPADORES DA ILHA


FACE OCULTA

«Os capadores da Ilha estão aí de faca afiada»
Manuel Serpa


OS CAPADORES DA ILHA



Muito desiludidos quase todos nós andamos com os políticos, quer da situação quer da oposição. Por isso é sempre bem-vinda uma pedrada no charco desta nossa política regional e ilhoa: apática, morna e viscosa.

E foi por isso mesmo que o deputado picaroto Manuel Serpa fez na sua última intervenção no período de antes da ordem do dia na Assembleia Legislativa Regional. Despindo as peias partidárias e eliminando as palavras poéticas delicodoces do discurso de agradar-ao-ouvido-mas-não-arranhar-ninguém leu em texto vigoroso e directo – de arrepiar.

Sem perder a elegância chamou os bois pelos seus nomes e pronunciou palavras viris como o basalto rude dos nossos mistérios e sólidas como natureza altaneira e exuberante.

Um discurso que todos os picoenses, aqui ou por esse mundo fora, deveriam ler e reter. Um discurso que se preocupou com causas profundas do nosso presente baço e com as razões da diáspora que nos continua a sangrar incessantemente.

Porque o que aí se diz tem muito a ver com a nossa ancestral castração colectiva e muito pouco habitual choradinho das reivindicações que passamos a vida a fazer com a mesma atitude do pobre, de prato de alumínio estendido à caridade pública, ou do deficiente, que exibe publicamente o seu aleijão, esperando almejada esmola.

E nada poderá, efectivamente, mudar enquanto os picoenses não perceberem que o que tem estado e está em marcha é um processo de castração, insidioso e constante. E não forem capazes de perder a mentalidade de parente pobre, venerador e obrigado.

O Pico é hoje uma ilha de grande valia no contexto dos Açores do mesmo modo que estes são uma grande valia no contexto europeu.

Porque o que nós temos para oferecer – tranquilidade, segurança, ruralidade autêntica, natureza quase intacta – são coisas que escasseiam por todo o lado num mundo que, inexoravelmente, caminha para a exaltação dos seus recursos naturais e o mesmo é dizer se afasta, irreversivelmente, do habitat natural para que estamos adaptados e que é condição imprescindível para o nosso equilíbrio físico e psíquico e, por isso, para nossa saúde e felicidade.

E se hoje temos apenas 15.000 habitantes – argumento tantas vezes utilizado para nos negarem o direito à saúde, à educação e à cultura para não falar do resto (aeroporto, protecção marítima, estradas, etc.) – isso deve-se não à falta de condições da Ilha para gerar riqueza e para cá manter os seus filhos mas aos déficites de desenvolvimento mantidos a partir de fora por estrangulamentos propositadamente mantidos.

Só assim se podem explicar as sucessivas omissões e desastradas decisões que têm abatido sobre a ilha. Como já noutra crónica se disse o Pico tem tudo e não tem nada! Tem três centros de saúde e um sistema de saúde que não funciona (que o diga que já precisou mesmo para o acontecimento mais normal da vida de uma pessoas que é o nascimento do filho), uma pista amputada numa zona em que o crescimento poderia ser quase indiscriminado, dois portos insuficientes com um terminal de passageiros vergonhoso, uma rede de estradas que desafia as do Koweit a seguir à guerra do Golfo, um cardeal camerlengo transformado em escola secundária!

Por muita que seja a incompetência não dá para acreditar que tudo seja apenas coincidência. Os capadores da ilha – de facto – existem, são muitos e andam de faca em riste. Não se trata de um delírio persecutório e barrista de velhos baleeiros em andropausa ou de funcionários públicos desocupados em tertúlias de fim de tarde enevoadas. O que se passa é o drama da ilha que foi decretada para se medida apertada ou da ilha que é medida pelo balaio em vez de rasoira, como também disse o deputado picaroto.

Mas quem são, afinal os capadores da ilha? São muitos, têm muitas caras e existem a todos os níveis: governo, partidos, associações de vária ordem, organismos oficiais, etc. todos se conhecem. E, atenção, há capadores da ilha em todos os partidos para que conste e não se tente desvalorizar esta magna questão com subterfúgios.

O Pico tem, pese tudo e todos, pernas para andar e isso assusta muito boa gente cuja sobrevivência passa pela manutenção do actual estado das coisa. Um Pico finalmente transformado m Ilha Maior que não seja apenas de poetas e cronistas faz medo a quem lhe chamou hipocritamente ilha do futuro.

E isso fez um amuleto para exorcizar qualquer veleidade de desenvolvimento da ilha do verdelho e dos baleeiros que, assim, continuaria para sempre uma coutada etnográfica.

Alguém afirmou que os próprios déficites de desenvolvimento podem constituir-se em grandes oportunidades de negócio. O Pico está nestas circunstâncias: tem grandes oportunidades, apenas é preciso que nós acreditemos em nós próprios e saibamos identificar e combater de forma viril, que não apenas nas palavras, quem nos persegue de faca afiada.

Mas que ninguém se iluda: “Os capadores da Ilha estão aí de faca afiada.”


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sexta-feira, setembro 30, 1994

INATELGATE


FACE OCULTA


INATELGATE OU UMA BARRACADA À PORTUGUESA



Se não bastasse o martírio do nosso desenvolvimento, sempre condicionado pela nossa endémica mansidão e pelo medo que desperta noutras ilhas e nos seus grupos de pressão, foi o Pico agora brindado com um acontecimento que ultrapassa as raias da normalidade para se atirar para o mais puro surrealismo: o caso do Hotel do Inatel.

Depois de tudo feito, menos a obra, voltamos à estaca zero.

Após o esforço e o empenhamento da Câmara da Madalena que se abalançou a um investimento imobiliário significativo, do projecto ter sido executado, a obra abjudicada e lançada – com pompa e circunstância e com a presença do Ministro da República – a 1ª pedra foi, subitamente e de forma inesperada, tomada a decisão de já não fazer a obra!

Posto que os dados que fundamentaram a decisão de fazer a unidade no Pico não se alteraram nem constatar que o Inatel tenha ido à bancarrota, cai-se na maior perplexidade e numa situação que deve ser a única a nível do país: um investimento é anulado exactamente na grelha de partida e quando todas as despesas preliminares – e são muitas – já estão feitas!

Situação que à partida permite formular, essencialmente, dois cenários:

1º- Uma complexa e total incompetência e irresponsabilidade de quem liderou o processo até esta fase e que sendo este que tal modo errado e anti económico levou a que alguém mais avisado e sensato decidisse anular tudo o que estava feito e assumir vultuosas verbas já despendidas como prejuízo irrecuperável.

2º- Uma mudança de decisão que não deve ter a ver com alteração de qualquer das premissas existentes mas apenas com pressões políticas e/ou outras que foram exercidas no sentido de conduzir o investimento para outras paragens.

Em qualquer dos cenários ressalta, desde logo, a completa falta de respeito do Inatel para com o Ministro da República e outras entidades intervenientes nomeadamente a Câmara Municipal da Madalena que foram reduzidos à condição – e pede-se desculpa pela rudeza da expressão – de palhaços. O ministro da República porque veio com o seu peso institucional dar pompa e importância ao arranque do empreendimento, a autarquia locar porque se empenhou – totalmente desde a primeira hora – numa iniciativa que considerou importante (e que sem dúvida é) para o desenvolvimento do concelho da ilha, tendo mesmo investido uma avultada verba na compra dos terrenos.

Uma vez que o primeiro cenário é quase inverosímil ficamos, em termos práticos, a braços com o segundo. Porque embora o Inatel sofra dos vícios de coisa pública, não acreditamos em tanta incompetência.

Entretanto, e como normalmente acontece nestas coisas, surgiram os mais variados boatos que vão desde a intenção de fazer a construção do hotel na Ribeira Grande – São Miguel ou na Madeira as dificuldades financeiras do Inatel. Hipóteses que poderão ter algum fundo de verdade mas que não são fundamentais para o teor desta análise.

Porque o que, de facto, importa analisar é a gravidade da decisão que foi tomada e a forma como o volte face se deu e, sobretudo, a reacção que teve se ser adoptada. Ainda ecoam os últimos acordes da “guerra” do bloco operatório do Centro de Saúde de São Roque e já está o Pico a braços com nova machadada.

O que se está a passar com a construção do hotel do Inatel no Pico é – para chamar os bois pelo seu nome – inconcebível, inaceitável e maximamente ultrajante para com esta ilha e os seus habitantes, para com os seus representantes legitimamente eleitos e para o representante do Governo da República da Região.

É uma cabala ordinária e sórdida que só poderá ser levada ai fim num sítio aonde toda a dignidade tenha sido perdida e já não exista o sentido do dever e da honra.

As primeiras reacções dos responsáveis autárquicos de ilha e da oposição foi adequada e expectante mas é fundamental que os responsáveis políticos se apercebam que a guerra do Inatel terá que ser uma guerra total e sem tréguas. Uma guerra que ponha toda a gente que não é do Pico, incluindo o Governo Regional, a perceber que a única saída para a crise é o cumprimento integral do que estava planeado, acordado e decidido.

Porque qualquer fraqueza que os picoenses, nomeadamente os políticos, demostrarem neste caso será sempre extrapolada para o futuro, seja ele alargamento da pista, escola da Madalena ou protecção da orla marítima da Lajes.

O caso do bloco operatório de São Roque foi, provavelmente, apenas o ensaio geral em matéria de defesa dos interesses do Pico.

Porque todos os argumentos que, porventura (?), existam para não fazer a obra do Inatel deviam ter sido analisados a seu devido tempo, nunca agora. E toda a posição dos picoenses que não leve à reposição integral do que estava para se fazer será sempre uma derrota.

O Pico terá de demonstrar, uma vez mais, que deixou de ser cordato e apaziguador, mesmo quando o espezinham, e de demonstrar que também é filho de boa gente.

As presentes autarquias picoenses têm dado sinais que percebem que o seu grande desafio é o da unidade de ilha e que os objectivos do desenvolvimento e da sua própria sobrevivência política passa por unirem fileiras, mesmo contra o governo do seu partido. Porque há coisas que têm que estar acima das balizas partidárias.

Espera-se que, agora, estejam à altura de assumir – de forma completa – este novo desafio. Porque o problema do Inatel da Madalena não é um problema daquele concelho, é um problema do Pico já que tem a ver com o desenvolvimento global da ilha e também porque é, porventura, mais um teste e até mesmo uma rasteira para, novamente, tomar pulso aos picoenses. Se hoje dermos o dedo ou mesmo a mão, amanhã teremos que dar o resto. Foi isto que a nossa história nos tem ensinado.

Que o Inatel e quem mais esteja por trás desta história ridícula sinta que entraram num caminho sem retorno. Tudo deve ter o seu tempo e a sua oportunidade e ambas passaram há muito neste caso que nos entristece e revolta. Naturalmente qualquer entidade Pública ou Privada tem o direito de fazer os seus investimentos aonde lhe parecer mais adequado. Mas não podemos, em circunstância alguma, esquecer as regras básicas porque se deve reger uma sociedade democrática e de direito.

E tantas vezes a distância entre a liberdade e a burla é bem pequena!


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quinta-feira, setembro 15, 1994

UM CASO EXEMPLAR


FACE OCULTA

«O interesse pela doença e pela morte é sempre apenas uma outra expressão do interesse pela vida»
T. MANN

UM CASO EXEMPLAR


Ainda está quase quente o corpo do jovem Victor que perdeu a vida num Centro de Saúde do Pico, aonde durante mais de duas horas permaneceu numa maca esperando, debalde, por um helicóptero que nunca chegou e usufruindo, apenas, dos rudimentares cuidados que é possível ministrar naquela unidade de saúde (de resto como nas outras).

Durante mais de duas preciosas horas foram feitas várias diligências para efectuar a evacuação aérea mas que embateram em dificuldades de carácter burocrático e funcional. Durante mais de duas horas não foi possível criar as condições entendidas necessárias para que o helicóptero viesse. Quando finalmente essas condições foram criadas já era tarde.

Possivelmente ninguém poderá afirmar, de forma categórica, que a jovem vida teria sido poupada se tivesse ocorrido uma transferência expedita para um centro hospitalar com as necessárias condições para fazer face a uma emergência grave. Mas o contrário também é verdadeiro: ninguém poderá, de forma categórica, afirmar que o doente tivesse sido assistido com os necessários meios – e de forma urgente como o caso exigia – mesmo assim não teria sobrevivido.

Duas horas podem ser uma eternidade em termos de uma emergência médica. Mesmo dois minutos poderão ser a fronteira entre a vida e morte.

O sinistrado tinha sido uma situação muito grave, tão grave que lhe provocou a morte. Pergunta-se: como pode esse doente ter permanecido tanto tempo numa unidade de saúde que apenas dispõe de rudimentares meios de diagnóstico e tratamento, uma unidade sem capacidade técnica para fazer face a um traumatismo craniano grave ou uma hemorragia interna, situações extremamente comuns em acidentes de viação?

Não é do conhecimento público o resultado da autópsia (efectuada de forma e em condições deploráveis) nem se pretende discutir questões que são eminentemente técnicas. Pretende-se sim dissecar as fragilidades do sistema de saúde da ilha sobretudo quando confrontado com uma emergência grave.

O que é tanto mais actual quanto ainda recentemente várias forças políticas tiveram que bater o pé para que, afinal, se fizesse no Pico um, ainda que modesto, bloco cirúrgico. Como a querer dizer que não adianta ter um centro de saúde apenas de paredes novas. É essencial que se criem na ilha as condições mínimas para fazer face a situações que podem ocorrer a qualquer momento. E que, para além disso, se organize um sistema de evacuação com graus de prioridade bem definidos e que não dependa do parecer de quem deveria estar localizado e não aparece quando é preciso.

Mais do que os aparatosos exercícios de evacuação pra televisão filmar e político fazer discurso, interessa que exista um sistema de evacuação que realmente funcione e que não emperre porque falta um papel azul com pintinhas cor-de-rosa ou porque um doutor ou militar acordou com os pés de fora.

O Pico continua a viver o drama de não ter uma unidade de saúde dotada dos meios indispensáveis para fazer face a situações realmente graves e a não ter um serviço de urgência dotado dos meios técnicos e humanos indispensáveis. Continua apenas a ter três “capelinhas” que continuam a dispor somente de um médico de chamada (?) que, em regra, pouco ou nada pode fazer – mesmo quando chega a tempo – por falta de quase tudo. Esse mesmo Pico aonde já não é, sequer, possível ter um parto perfeitamente normal!

O dinheiro que hoje se gasta no Pico com a saúde – se fosse devidamente gasto – seria sem dúvida suficiente para se obterem graus de eficácia e rentabilidade extraordinariamente maiores. Como se percebe que uma ilha não possa ter uma unidade de saúde minimamente dimensionada e diferenciada mas que possa ter centros de saúde a abarrotar de pessoal, três gabinetes de radiologia, três laboratórios de análises, três parteiras que não fazem partos, etc., etc.,?!

Independentemente da causa de morte que constar na certidão de óbito do malogrado acidentado poucas dúvidas restarão a quem é sensato que não foi feito tudo o que deveria e poderia ter sido feito. E que isso ocorreu por culpa de um sistema que não está minimamente organizado para fazer face a situações de grande emergência. Não há, portanto, que procurar, agora bode expiatórios que serão possivelmente meros peões de brega para uma ocorrência que, infelizmente, já não tem remédio. Há sim que meditar no problema de fundo que é grave, muito grave e que toda a gente parece ignorar.

O Victor deixou-nos de uma forma súbita, trágica e inglória. Todos os que ficamos nesta ilha de exasperante mansidão somos potenciais victores.

Todos.


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terça-feira, agosto 30, 1994

UMA CUNHA PARA A COMISSÃO POLÍTICA


FACE OCULTA


UMA CUNHA PARA A COMISSÃO POLÍTICA DE ILHA DO PICO DO PSD


O recente sucesso da actuação política de ilha do Pico do PSD na questão do bloco operatório do futuro Centro de Saúde de S. Roque, em relação ao governo que apoia e à oposição, veio abrir novos horizontes para uma ilha a que tem faltado fôlego para reivindicar, de forma eficaz, o seu direito à qualidade de vida e ao desenvolvimento.

Pela primeira vez na história democrática da Ilha do Pico o PSD local foi capaz de, pública e frontalmente, criticar o «seu» governo e concertar algum tipo de actuação política com a oposição. E os resultados estão à vista: em vez de, uma vez mais, ser defraudado um compromisso assumido tudo acabou por voltar ao projecto inicial. E toda a gente lucrou com isso, incluindo o próprio PSD.

De modo que, porventura, estão criadas novas condições para que o Pico passe a defender os seus interesses de forma mais hábil e eficaz perdendo os tradicionais e reverenciais temores partidários.

Se faz sentido que os partidos procurarem manter uma imagem exterior de unidade e coerência não faz menos sentido que essa imagem não seja conseguida à custa de interesses legítimos dos seus eleitores. Só assim a democracia se poderá dignificar e os partidos recuperarem alguma da muita credibilidade que já perderam.

Resta agora saber se o que se passou foi apenas um acto isolado e fortuito ou se foi primeiro passo numa nova via.

Segundo o primeiro responsável pela estrutura máxima do partido de governo na Ilha do Pico tratou-se de um aviso à navegação com vista a outras situações que poderão vir a verificar-se!... E presume-se que está a falar do alargamento da pista, das estradas do Pico e de Escola da Madalena. Situações sobre as quais também se presume que tenha a legítima suspeita de que poderão vir a ser vítimas de iguais tentativas de poupanças orçamentais que o governo nos possa a vir a querer fazer à custa das ilhas de baixo.

E, se não se questiona a importância do bloco operatório de centro de saúde de S. Roque, há que lembrar, contudo, outras prioridades que estão, indiscutivelmente, num plano superior como é o caso da pista, pois do seu alargamento dependerá o futuro da ilha. Porque não há ilha que se possa desenvolver sem portas de entrada e saída adequadas. Razão pela qual a presente pista é o estrangulamento número um do Pico, em conjunção com as surrealistas ligações marítimas da Transmaçor e os preconceitos da SATA.

Ou seja: enquanto chegar ao e sair do Pico continua a ser o autêntico martírio que – tantas vezes – é, não há santo nem santa que nos valha. Para, ainda por cima, sermos despejados em estradas que estão em estado de conservação e traçado completamente escandaloso e incompatíveis com qualquer coluna civilizada por muito resistente que seja.

E não vale a pena argumentar que o alargamento da pista do Pico está contemplado no plano médio prazo. Porque isso não passa de uma declaração de intenções da mesma forma que o bloco cirúrgico estava previsto no projecto inicial e nas declarações dos responsáveis e, depois, foi sub-repticiamente retirado. E não fora ter-se detectado esse «truque», a tempo, e não teria sido simplesmente feita uma valência que o tempo se encarregará de demonstrar como é importante para a ilha.

Portanto um novo modelo de actuação política poderá estar lançado no Pico se houver essa vontade e algumas repreensões partidárias não vieram refrear, afinal, os nossos ânimos que pareceram ter surgido neste ano de ressurgimento autárquico do PSD no Pico. Mas, em qualquer caso, alguma coisa se terá passado ao nível de subserviência – atenta, veneradora e obrigada – que tem caracterizado, ao longo dos anos, as hostes picoenses daquele partido. o que quer que seja, esperemos que se mantenha.

E já agora uma cunha para a Comissão Política de Ilha do Pico do PSD: apliquem o que aprenderam nesses novos voos a todas as outras coisas que são supostas fazer ou que já deveriam ter sido feitas e que nunca se fizeram.


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sexta-feira, julho 29, 1994

Ó SENHOR COMISSÁRIO DA PSD


FACE OCULTA


Ó SENHOR COMISSÁRIO DA PSD, QUEM NOS PODE VALER?


O trânsito caótico do Pico é uma questão que já se tornou motivo habitual de queixas e reparos por parte de todos os que preocupam com a segurança rodoviária por estes lados. São inúmeras as notas, comentários e crónicas que a esse respeito têm sido escritas nos mais variados jornais, incluindo este.

Mas, infelizmente, de pouco ou de nada têm servido essas múltiplas incursões ao muro das lamentações. Porque tudo tem vindo a piorar: o estado das estradas, a falta de sinalização, as infracções e a passividade das autoridades responsáveis.

Sendo cero que Portugal detém o recorde europeu de acidentes de viação e o condutor português o ceptro da má condução, seria interessante saber qual q posição, em termos relativos, do Pico. Mas será, certamente, cimeira. Apenas o baixo tráfego viário nos vale.

Os condutores, de forma geral, são tecnicamente pouco habilitados, desconhecedores do código de estrada e completamente alheados da realidade do trânsito. Comportam-se na estrada de forma totalmente autista como se mais ninguém exista, fazendo da manobra perigosa e do desrespeito pelas mais elementares regras de segurança o pão nosso de cada dia.
Param e estacionam em qualquer lado, invertem marcha em cima de curvas e lombas, galgam por norma os traços contínuos, ultrapassam em curvas, entram na faixa de rodagem de marcha atrás, conversam na estrada ocupando as faixas de rodagem na totalidade, excedem brutalmente os limites de velocidade, etc. Isto quantas vezes, ainda por cima, num mar de vacas que, calmamente, “pastam” no meio da estrada!

Os responsáveis por esta calamitosa situação são muitos – desde logo os condutores, depois os departamentos governamentais e autárquicos responsáveis pela conservação das estradas e pela sinalização – mas a fatia de leão cabe à PSP.

Não será exagero dizer que o trânsito no Pico está em perfeita auto-gestão: toda a gente faz mais ou menos o que lhe apetece, quando lhe apetece e aonde lhe apetece. Conduzir, hoje, no Pico é uma aventura de navegação à vista. Tudo pode acontecer: desde o carro estacionado fora de mão e em cima de uma curva, aos “parques de estacionamento privativos” de qualquer tasca ou café em ambas as faixas de rodagem, à total falta de utilização de sinais de piscas e às vacas no meio do caminho.

Não há regras. As que aprenderam para o exame de código ficaram “agarradas” ao papel do teste. Não há uma linguagem de trânsito inteligível. Stop não quer dizer parar e olhar, quer dizer andar sempre que para a frente é que é caminho!

Enquanto isso a PSP preocupa-se com os “magnos” problemas das placas de propriedade, com o balão fora das discotecas ou com a papelada. Não há PSP nas estradas do Pico a menos que seja transparente.

Não exactamente para punir ou para a caça à multa mas para ensinar, orientar, disciplinar e, se for o caso disso, também para punir.

A maioria dos condutores quando tira carta têm sobretudo noções teórica. Depois vai para a estrada e, se calhar, nos primeiros tempos ainda tem alguma preocupação em respeitar o Código de Estrada e ter os outros em atenção. Mas rapidamente se apercebe que o que aprendeu na escola não tem qualquer correspondência na prática e que não adianta andar a respeitar as regras que aprendeu porque ainda acaba por passar por parvo e andar constantemente exaltado. Assim, na maior parte dos casos, acaba por se adaptar à anarquia reinante e passa a fazer apenas pela sua vida como os outros fazem.

E tudo isso atingiu tais proporções que a maioria dos condutores picoenses já perdeu a noção de que é andar na estrada de acordo com uma linguagem que tem de ser igual para todos sob pena de ninguém se entender. Stop para mim tem de significar a mesma coisa que para todos os outros condutores que andam na estrada.

O trabalho a desenvolver pela força policial responsável pelo normal funcionamento do trânsito, sobretudo em lugares de trânsito tão deteriorado, tem de ser um trabalho de grande persistência e determinação no sentido de começar a criar nas pessoas um outro espírito quando se sentam por trás de um volante. Está provado que esta evolução não vai acontecer por geração espontânea. Só acontecerá como fruto da intervenção contínua dos agentes da autoridade que têm que vir em força pra a estrada, sem ter como preocupação principal a punição e a multa.

Multa que muitas vezes as pessoas não percebem porque são castigadas por coisas que, embora mal, sempre fizeram.

Que adianta uma súbita fúria de multas de estacionamento em sítios urbanos perfeitamente inofensivos, embora ilegais, quando as estradas estão cheias de estacionamentos extremamente perigosos e igualmente ilegais? Que adianta multar por falta de um papel ou de um requisito legal obscuro quando as estradas estão cheias de manobras perigosas de todo o tipo?

 No trânsito, como tudo na vida, é preciso saber discernir o essencial do supérfluo e é imprescindível assegurar o primeiro antes de se preocupar como segundo. No Pico já se morre a sério na estrada e cada vez se vai morrer mais se não forem tomadas medidas urgentes, sobretudo de carácter didáctico e disciplinador. Se os efectivos policiais que existem no Pico não são suficientes ou competentes que se procure uma saída adequada mas que tem que ser urgente. Cada vez mais a vida de muita gente vai depender disso.

Ó Senhor Comissário da PSP, quem nos pode valer?


P E D R O  D A M A S C E N O

PS – Se o Senhor Comissário não acredita em tudo isso venha passar uns dias incógnito nas estradas do Pico e vai ver!...


sexta-feira, julho 15, 1994

A ODISSEIA DAS VACAS


FACE OCULTA


A ODISSEIA DAS VACAS


As belezas naturais e a ruralidade do Pico são inquestionáveis e constituem, mesmo, dois pilares fundamentais para o seu desenvolvimento que deverá ser equacionado nesses termos e não segundo um modelo de características urbanas. A ruralidade da ilha poderá ser uma autêntica galinha de ovos de ouro se for devidamente aproveitada e potencializada.

A última coisa que quem nos visita – e tem olhos para ver – poderia desejar é a perca dessa ruralidade e o ganho de um “desenvolvimento” de características suburbanas, copiado a partir de modelos que nada têm a ver com a nossa realidade.

A ilha do Pico é um espaço eminentemente rural e é nessa matriz que qualquer desenvolvimento deve ter as suas raízes. Um desenvolvimento que, cada vez mais, acentue o carácter único de uma ilha que é um dos poucos casos de beleza, tranquilidade e segurança que restam no espaço europeu. Corromper isso é não ter percebido as linhas de força que devem motivar o crescimento económico de uma ilha que, mercê do seu atraso anterior, tem hoje potencialidades únicas dentro do próprio arquipélago. Potencialidades únicas que derivam da aprendizagem que pode ser fita de erros que se fizeram um pouco por todo o lado e da sensibilidade para as questões do ambiente e da natureza que, nível europeu, tem vindo a ganhar, ininterruptamente, adeptos.

O grande desafio que se coloca ao Pico é aproveitar os déficites do passado e os conhecimentos do presente para desenvolver de uma forma original.

Mas se a ruralidade é um bem precioso com que devemos contar para o nosso desenvolvimento não deve, em circunstância alguma, ser confundida com parolice ou primarismo. Uma coisa é ser rural no que isso significa de ligação à natureza, respeito pela terra e empatia com as forças naturais outra, completamente diferente, é associar a ideia de rural a atraso e obliteração das regras de conveniência que devem existir em qualquer sociedade civilizada.

Rural não implica, necessariamente, falta de civismo do mesmo modo que urbano não significa, também necessariamente, civilização. Pode ser exactamente o contrário como está provado um pouco por todo o lado. Qual será mais civilizado: a Amadora ou Sacavém ou uma das muitas aldeias rurais do Tirol austríaco?

Mas rural pode também significar primitivismo e falta de sentido comunitário e de respeito pelas regras da convivência civilizada e democrática. E, infelizmente, o nosso Pico ainda tem muito disso. Os exemplos abundam e vão desde o lixo que se deita de qualquer maneira em qualquer lado aos estacionamentos que se fazem por todo o lado e que põem em risco a segurança dos cidadãos, numa total falta de sensibilidade pela existência de regras que têm como objectivo fundamental a defesa da vida e da fazenda desses mesmos cidadãos. Cada um por si e Deus por todos parece ter-se tornado um dos princípios da nossa vida quotidiana.

Perderam-se alguns princípios que sempre caracterizaram a vida no campo e que tinham a ver com um elevado sentido de entreajuda comunitária e com sãos hábitos de cortesia que ainda se detectam nos mais velhos. Em sua substituição têm-se vindo instalar, de forma preocupante, uma “cultura” híbrida e que é uma mistura de provincianismo arrogante e novoriquismo parolo.

E é neste caldo que surge a temática das vacas nas estradas do Pico, nomeadamente na transversal e longitudinal. Inicialmente havia uma ou outra situação de perigo que, frequentemente, decorria de situações a que os pastores eram alheios. Hoje o perigo e caos ocuparam as estradas da ilha num total desrespeito pela lei, pela segurança e mesmo pelas mais elementares regras de cortesia.

As estradas são das vacas e os veículos são objectos, mais ou menos estranhos, que também por lá circulam! Em qualquer curva, debaixo do nevoeiro mais intenso lá estão elas invariavelmente ocupando todas as faixas de rodagem perante a total passividade dos seus pastores que chegam ao cúmulo de se sentarem, comodamente ao volante dos respectivos carros como se nada tivessem com o assunto!

O Pico é uma ilha rural e com uma pecuária forte, e ainda bem. Mas isso não tem que significar a selva e a total e completa falta de respeito por tudo e por todos perante a passividade dos responsáveis quer governamentais quer policiais. Desde quando se pode em Portugal ocupar todas as faixas de rodagem de estradas correntes com vacas, seja em curvas, seja debaixo de nevoeiro, sem qualquer tipo de limitações?

Que vivam as vacas que nos merecem todo o respeito e que progrida a actividade económica de que são o suporte fundamental, mas que isso não ponha constantemente em causa a segurança a liberdade de todos os outros cidadãos que também têm direitos.

A odisseia das vacas nas estradas do Pico é por isso mesmo um bom exemplo de ruralidade primitiva e egoísta que se deve combater e fazer substituir por uma ruralidade civilizada em que se equacionem as necessidades e os problemas do sector pecuário com as exigências de uma sociedade civilizada.

Essa condição é perfeitamente possível mas para isso é indispensável que os governantes governem e os policiais policiem. Apenas uma escandalosa omissão de todos os responsáveis tem permitido uma situação que atesta a nossa incapacidade colectiva para desenvolver sem perversões que a ninguém servem e que apenas tornam o nosso quotidiano mais difícil.



 P E D R O  D A M A S C E N O


quinta-feira, junho 30, 1994

IRONIAS DA JUSTIÇA


  FACE OCULTA

“Cada vez que um patife não é punido, um homem honesto é troçado”
George Saville


IRONIAS DE JUSTIÇA



Quando há bem pouco tempo, um pacato cidadão britânico, em fase terminal de uma doença maligna, foi preso por se ter insurgido contra uma sentença injusta, era dada mais uma prova pública da farsa em que a justiça ocidental tantas vezes se transforma.

A história é simples: um jovem londrino é atacado por um grupo de marginais e é espancado quase até à morte. Dois dos autores do assalto são presos e julgados e o resultado final é a libertação com uma pena levíssima de prestação de serviços cívicos (?). 

Indignado o pai da vítima insurge-se em pleno tribunal, dirigindo algumas palavras duras ao juiz (provavelmente as mesmas que qualquer pai normal e corajoso dirigiria face a um tal disparate). O juiz exige desculpas que o pai não dá e este é imediato condenado a pena de prisão efectiva e encarcerado apesar do seu estado de saúde muito frágil.

Conclusão inevitável: é mais grave, em Inglaterra, insultar um juiz – mesmo com razão – do que agredir muito gravemente um cidadão. E falamos do país europeu com mais antigo curriculum democrático e com um sistema judicial com muitos pergaminhos.

 Como pode, então, uma perversão tão evidente? Pelo simples mas preocupante facto de que a justiça do nosso mundo ocidental se ter tornado num intricado mundo de burocracia em que tudo joga a favor do delinquente habitual e contra o pacato cidadão comum que tenha a pouca sorte de eventualmente meter “o pé na poça”. O complexo mundo judiciário tornou-se um terreno extremamente favorável ao mundo do crime e aos delinquentes habituais que sabem, como ninguém, tirar partido das deficiências do sistema e mesmo dos direitos e liberdades constitucionais que existem com a preocupação essencial de defender cidadão comum mas que tantas vezes permitem lacunas legais e expedientes de todas a ordem que são aproveitadas por quem não tem escrúpulos de qualquer ordem.

O sistema na sua preocupação meritória de defender os direitos, liberdades e garantias criou um figurino de justiça que, no dia-a-dia, se mostra incapaz de assegurar aquilo que deveria ser a sua essência: a punição rápida e eficaz dos prevaricadores e a defesa real da segurança e bem-estar do cidadão comum. O sistema persiste em tratar com paninhos quentes e com cortesia quem deliberadamente e de forma sistemática o utiliza para a prática impune de crimes.

E de tal modo isto se tornou um dos aspectos da nossa vida que já ninguém acredita, a sério, na justiça. Ninguém acredita nem na política nem na justiça. Toda a gente sente, de forma mais ou menos evidente, que o cidadão normal e cumpridor tem a maior dificuldade em fazer valer, sem sede de tribunal, os seus direitos – levar-lhe-á anos a fio e quando a justiça chega (se chega) vem tarde e a más horas não servindo já para nada. Em contrapartida toda a gente sente que o prevaricador “espertinho” acaba sempre por se safar porque joga com as debilidades do sistema e com direitos que foram assegurados a pensar nos cidadãos honestos e bem intencionados.

A justiça para cumprir os seus fins tem de ter duas componentes essenciais: ser rápida e eficaz. O patife tem de sentir na pele, de forma rápida, uma punição que lhe dê claramente a noção de que o crime não compensou.

Os armazéns de presos em que se transformaram as nossas cidades são um peso morto nas nossas sociedades com enormes encargos para a comunidade e constituem, geralmente, verdadeiros viveiros de criminosos graves que pululam à sombra do ócio. Não pode ser a sociedade a pagar o castigo aos que prevaricaram. São eles próprios que terão de assegurar o pagamento do sistema de punições que lhe é infligido

Uma sociedade civilizada tem que saber defender os direitos e liberdades dos seus cidadão mas também tem que saber garantir a sua segurança de forma eficaz e assegurar que o lobo vestido na pele de cordeiro não seja confundido com este. Deve ser aberta e tolerante para com o cidadão comum que cumpre de forma habitual e regular os seus deveres (mesmo prevaricando aqui e ali em coisas menores) mas firme e intransigente para o delinquente habitual e grave.

As sociedades modernas têm que perder de forma rápida alguns complexos e actuar de forma eficaz sob pena de se transformarem em sítios aonde não é possível viver com um mínimo de qualidade de vida. Democracia nunca deve ser sinónimo de fraqueza: tolerância sim, debilidade nunca. O primado das liberdades individuais não pode ser levado ao extremo de se transformar no parteiro da opressão das liberdades colectivas.

O estado de direito para ganhar credibilidade rem que assegurar um sistema judicial que a generalidade dos cidadãos respeite e a quem reconheça um papel crucial na defesa da sua liberdade e qualidade de vida e que seja visto e sentido pelos criminosos como um obstáculo temível às suas actividades.

Só assim se poderão separar as águas e garantir sociedades aonde valha a pena ser cumpridor e honesto.


   P E D R O  D A M A S C E N O